Veja revela os detalhes da sindicância que foi mantida em segredo pelo governo porque poderia criar "instabilidade institucional". Ela mostra como a ex-secretária Rosemary Noronha se aproveitou da intimidade com o ex-presidente Lula para ganhar dinheiro, traficar poder e viver como uma soberana
Robson Bonin
Construído no centro da Piazza Navona, um dos endereços mais cobiçados de Roma. o Palazzo Pamphili é uma preciosidade arquitetônica entre os edifícios que abrigam a embaixada brasileira nas capitais do mundo. O prédio, erguido no século XVII, tem salões, quartos e pátios adornados com quadros, esculturas e afrescos barrocos de alta qualidade artística. São poucos os privilegiados que conhecem suas dependências mais íntimas. Estão nessa lista presidentes e ex-presidentes da República e personalidades estrangeiras convidadas, entre elas a princesa Diana da Inglaterra. Tão luxuoso quanto restrito, sabe-se agora, o palácio frequentado pela realeza e por chefes de estado também abriu seus a aposentos reservados para uma funcionária pública, Rosemary Noronha, ex-chefe do escritório da Presidência da República em São Paulo, que protagonizou recentemente um dos mais rumorosos casos de promiscuidade entre os interesses públicos e privados. Veja teve acesso a documentos oficiais que registram esse e outros capítulos inéditos da história envolvendo a mulher que, por anos, conduziu uma repartição pública como se fosse um pequeno reino - o reino de Rose.
Durante dois meses, uma comissão especial do governo colheu depoimentos de funcionários, vasculhou mensagens eletrônicas, registros de agenda e listas de visitantes para tentar reconstituir, ao menos em parte, a rotina no gabinete da Presidência da República em São Paulo entre 2009 e 2012. No ano passado, a Polícia Federal descobriu que Rosemary Noronha usava a influência e a intimidade que desfrutava com o ex-presidente Lula para se locupletar do poder. Ela patrocinou lobbies, agendou encontros com autoridades e ajudou uma quadrilha que vendia pareceres a empresários. Em troca, recebia vantagens e remuneração em dólar, euro, real e até em won, a moeda coreana. Exonerada do cargo e indiciada por formação de quadrilha, tráfico de influência e corrupção passiva, Rosemary foi alvo de uma sindicância conduzida por técnicos da Presidência. O relatório final da investigação, mantido em segredo por determinação expressa do próprio governo, é a síntese do que para alguns é a norma fria do serviço público em Brasília, uma grande loja de facilidades.
O resultado da investigação é um manual de como proceder para fraudar e trapacear no comando de um cargo público quando seu ocupante priva da intimidade do presidente da República. Sob o comando da Casa Civil da Presidência, os técnicos rastrearam anormalidades na evolução patrimonial de Rosemary Noronha e recomendaram que ela seja investigada por suspeita de enriquecimento ilícito. Um processo administrativo já foi aberto na Controladoria-Geral da União. Ex-bancária, Rose, como é chamada pelos mais íntimos, foi uma destacada militante do movimento sindical no início da década de 90. Era admirada na categoria pelos belos cabelos longos e por outras peculiaridades do seu biotipo. Seus talentos foram logo notados pelos figurões do PT. O então deputado José Dirceu. de quem se tornou muito amiga, contratou-a como secretária de gabinete. Logo depois, promovida, Rose passou a organizar a agenda do candidato Lula, cuidar das suas contas, anotar seus recados, enfim, gerenciar o cotidiano do futuro presidente. E fazia isso com muita competência, segundo pessoas próximas. No governo petista, ela continuou cuidando do dia a dia do presidente, principalmente quando havia viagens internacionais. Por determinação do cerimonial do Palácio do Planalto, era autorizada a se engajar na comitiva sempre que Marisa, a esposa de Lula, não podia acompanhar o marido. Sem uma função definida, Rose ficava hospedada no mesmo hotel do presidente, de prontidão para ser acionada em caso de necessidade. A extrema proximidade com o presidente provocou ciúme e desentendimentos. Em 2007, ela deixou o cargo de assessora especial de Lula e assumiu a chefia do escritório da Presidência da República em São Paulo. Àquela época, a corte já sabia: falar com Rose era o atalho mais rápido para se comunicar com o presidente.
A sindicância destoa da tradição dos governos petistas de amenizar os pecados de companheiros pilhados em falcatruas. Dedicado exclusivamente aos feitos da poderosa chefe de gabinete, o calhamaço de 120 páginas produzido pela sindicância é severo com a ex-secretária. Mostra que Rosemary encontrou diferentes formas de desvirtuar as funções do cargo. Ela pedia favores ao "PR" - como costumava se referir a Lula em suas mensagens - com frequência. Era grosseira e arrogante com seus subalternos. Ao mesmo tempo, servia com presteza aos poderosos, sempre interessada em obter vantagens pessoais - um fim de semana em um resort ou um cruzeiro de navio, por exemplo. Rosemary adorava mordomias. Usava o carro oficial para ir ao dentista, ao médico, a restaurantes e para transportar as filhas e amigos. O motorista era seu contínuo de luxo. Rodava São Paulo a bordo do sedã presidencial entregando cartas e pacotes, fazendo depósitos bancários e realizando compras. Como uma rainha impiedosa, ela espezinhava seus subordinados.
Depoimentos de motoristas, secretárias e copeiras que recebiam ordens da ex-secretária revelam uma rotina de humilhações públicas. Rosemary gritava e distribuía insultos na frente de visitantes do gabinete. Um simples cumprimento de boa tarde dirigido a ela na hora errada poderia resultar em tremenda grosseria. Certo dia, humilhou uma secretária a tal ponto que o caso foi parar no hospital. Depois de cair em prantos por ter sido ameaçada de demissão, a servidora passou mal e precisou ser socorrida pelos bombeiros do órgão. Ao constatar que a pressão dela estava muito alta, o bombeiro chamou Rosemary à sala e relatou a necessidade de levar a servidora imediatamente ao médico. Não havia ambulância disponível - mas alguém lembrou que o carro oficial estava na garagem. Rosemary ficou transtornada com a sugestão e proibiu o motorista de prestar socorro. A funcionária e o bombeiro acabaram indo de táxi para o hospital. Depois disso, a rainha Rose ainda proibiu a serva de lhe dirigir a palavra e, por fim, a demitiu.
Rosemary Noronha se comportava e era tratada como majestade, independentemente de onde estivesse. Os registros de uma viagem à Itália em 2010, por exemplo, comprovam que as regalias à sua disposição extrapolavam as fronteiras. Mensagens inéditas reunidas no relatório da investigação mostram que a ex-secretária foi recebida com honras de chefe de estado na embaixada brasileira em Roma. Todas as facilidades possíveis lhe foram disponibilizadas. Rose temia ter problemas com a imigração no desembarque em Roma. O embaixador José Viegas enviou-lhe uma carta oficial poderia ser apresentada em de algum imprevisto. Rose conhecia a Itália. O embaixador colocou o motorista oficial à sua disposição. Rose não tinha hotel. O embaixador convidou-a a ficar hospedada no Palazzo Pamphili - e ela não ocuparia um quarto qualquer. Na mensagem, o embaixador brasileiro saudou a ida de Rose com um benvenuti!, em seguida desejou-lhe buon viaggio e avisou que ela ficaria hospedada com o marido no "quarto vermelho". Quarto vermelho?
Como o Itamaraty desconhece esse tipo de denominação, acredita-se que "quarto vermelho" fosse um código para identificar os aposentos relacionados ao chefe - assim como normalmente se diz "telefone vermelho", "botão vermelho", "sala vermelha"... Independentemente disso, com a ajuda da Controladoria-Geral da União, a investigação da Casa Civil confirmou que a ex-chefe de gabinete não estava a trabalho em Roma. Por isso, considerou que a estada nas dependências diplomáticas configurou mais um caso de apropriação particular do patrimônio público e recomendou que o Itamaraty apurasse o episódio. Indagado, o embaixador José Viegas, que deixou o posto em 2012, disse que não podia "discriminar quem chega com dinheiro público ou privado" à embaixada. Em tese. portanto, qualquer mortal de passagem por Roma está autorizado a pernoitar uns dias na embaixada. Sobre o tal "quarto vermelho", garantiu que se trata de um cômodo secundário.
Tanto nessa passagem pela embaixada brasileira em Roma quanto nos desmandos e abusos cometidos no gabinete de São Paulo, a fonte de poder de Rosemary sempre foi a mesma: a relação de intimidade com o ex-presidente Lula. Por força dessa proximidade, ela passava boa parte do tempo recebendo gente importante preocupada em bajulá-la. Um rosário de empresários que apostavam no prestígio dela para conseguir reuniões com servidores inacessíveis do governo, intermediar contratos milionários em órgãos públicos e abrir caminho para nomeações em cargos de alto escalão. Diariamente, por telefone ou e-mail, dirigentes da Caixa Econômica Federal, do Banco do Brasil e da Petrobras, para citar alguns exemplos, recebiam pleitos de Rosemary. Na maioria das vezes, os pedidos eram mequetrefes, como ingressos para shows e eventos culturais. Mas, em outras oportunidades, os contatos envolviam cifras milionárias. As mensagens interceptadas revelam a falta de cerimônia com que ela misturava interesses públicos com privados, chegando até a falsificar diplomas para ela e o marido. Por ser tão próxima de Lula - seu único fiador no cargo -, Rosemary articulava nomeações nas mais variadas áreas do governo. De vagas em agências reguladoras a tribunais superiores, os candidatos constantemente recorriam a sua influência. Uma troca de mensagens apreendidas mostra que Francis Bicca, então assessor de Dias Toffoli na Advocacia-Geral da União, procurou os serviços de Rose para tentar emplacar o irmão em uma cadeira do Superior Tribunal Militar. Rosemary pergunta: "Quem mais além do Toffoli falou com o PR?". Bicca responde que "só tem certeza mesmo" da recomendação direta do "ministro José Dirceu, do Gilberto Carvalho e do Chefe, além dos militares". Rose diz a Bicca que cumpriu sua missão: "Entreguei ao PR. conversei e falei dos apoios. Ele levou o currículo e acho que vai dar tudo certo". Nesse caso, alguma coisa deu errado. Depois de reconstituir esses episódios da corte de Rosemary, a ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, determinou a abertura de processo administrativo. Um detalhe curioso: o relatório final da sindicância era mantido em segredo porque a comissão avaliou que sua divulgação poderia causar "instabilidade institucional". A reação de Rosemary Noronha mostra que realmente há motivos mais do que concretos para tamanha preocupação.
Thiago Prado
Rosemary Noronha está magoada e ameaça um revide em grande estilo. Sentindo-se desamparada pelos velhos companheiros que deixaram correr solta a investigação que pode levá-la mais uma vez às barras da Justiça, agora por enriquecimento ilícito, a ex-chefe do gabinete presidencial em São Paulo ameaça contar seus segredos e implicar gente graúda do partido e do governo. Se não for apenas mais um jogo de chantagem típico dos escândalos do universo petista, Rose poderá enfim dar uma grande contribuição ao país. Pelo menos até aqui, a ameaça da amiga dileta de Lula faz-se acompanhar de lances concretos - tão concretos que têm preocupado enormemente a cúpula partidária. O mais emblemático deles é a troca da banca responsável por sua defesa. Rose, que vinha sendo defendida por advogados ligados ao PT, acaba de contratar um escritório que durante anos prestou serviços a tucanos. O Medina Osório Advogados, banca com sede em Porto Alegre e filial no Rio de Janeiro, trabalhou para o PSDB nacional e foi responsável pela defesa de tucanos em vários processos, como os enfrentados pela ex-governadora gaúcha Yeda Crusius.
Os novos advogados foram contratados para defendê-la no processo administrativo em que ela é acusada de usar e abusar da estrutura da Presidência da República em benefício próprio - justamente o motivo da mágoa que Rose guarda de seus antigos companheiros. Para ela, com esforço, até dá para compreender que a companheirada não tenha conseguido barrar a Operação Porto Seguro, investigação da Polícia Federal que apontou suas ligações com uma máfia especializada em vender pareceres oficiais. O que ela não engole é que o próprio Palácio do Planalto, numa apuração administrativa, esteja permitindo que seus podres venham à tona - e, mais do que isso, que ela possa ser responsabilizada e cobrada judicialmente por seus malfeitos. Dizendo-se abandonada, ela já confidenciou a pessoas próximas que está perto de explodir. O que isso quer dizer? Não se sabe. O fato é que seus advogados anunciaram que vão arrolar como testemunhas de defesa no processo figuras-chave da república petista. Na semana passada, ela decidiu pedir que quatro destacados companheiros sejam ouvidos na investigação administrativa tocada pelo governo. Gilberto Carvalho, secretário-geral da Presidência e ex-chefe de gabinete de Lula, e Erenice Guerra, ex-ministra da Casa Civil e ex-braço-direito da presidente Dilma, encabeçam a lista. Completam o rol Beto Vasconcelos, atual número 2 da Casa Civil, e Ricardo Oliveira, ex-vice-presidente do Banco do Brasil e um assíduo visitante do gabinete que ela chefiava na Avenida Paulista. São apenas os primeiros nomes, segundo a estratégia montada pela ex-secretária.
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Rosemary Noronha se hospedou em embaixada em viagem não oficial, diz revista
- O Globo, 20/04/2013
- Relatório de comissão especial da Presidência pede que ex-funcionária seja investigada por suspeita de enriquecimento ilícito
- Advogados negam acusações e pedem a anulação da sindicância, por entender que houve “cerceamento da defesa”
SÃO PAULO. A ex-chefe do escritório da Presidência da República em São Paulo, Rosemary Noronha, usou sua influência para se hospedar na embaixada do Brasil em Roma, na Itália, em viagem não oficial, segundo relatório da comissão especial da Presidência da República obtido pela revista “Veja”.
Denunciada no fim do ano passado pelo Ministério Público Federal (MPF) por formação de quadrilha, tráfico de influência e corrupção passiva, Rosemary foi alvo de investigação solicitada pela ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, que ao ter acesso ao relatório determinou a instauração de processo administrativo contra a ex-funcionária e recomendou que o Itamaraty apurasse o episódio.
Técnicos responsáveis pela produção do documento também recomendaram que Rose seja investigada por suspeita de enriquecimento ilícito, crime que os advogados da ex-servidora, Fábio Medina Osório e Aloísio Zimmer Júnior, negam ter ocorrido. Eles também sustentam que viagens e contatos de sua cliente “tiveram natureza legítima”.
E-mails obtidos pela Presidência mostram que Rosemary foi convidada pelo então embaixador do Brasil na Itália, José Viegas, a ficar hospedada no Palazzo Pamphili com o marido, em viagem realizada em 2010.
Com ajuda da Controladoria-Geral da União, os técnicos do governo apuraram que a ex-chefe de gabinete não estava a trabalho em Roma, de acordo com o relatório. Por isso, entenderam que a estada nas dependências diplomáticas poderia ser considerado um caso de apropriação particular do patrimônio público e recomendaram ao Itamaraty a apuração do episódio.
À revista, o ex-embaixador do Brasil na Itália, José Viegas, disse que não poderia “discriminar quem chega com dinheiro público ou privado” à embaixada.
Depoimentos de funcionários, mensagens eletrônicas trocadas por Rose e registros em agendas e livros de visitantes do escritório da Presidência da República em São Paulo trazem indícios de que a funcionária usava a influência e a intimidade que desfrutava com o ex-presidente Lula para obter vantagens indevidas, de acordo com a revista. O relatório também aponta que Rosemary usava o carro oficial da Presidência para compromissos pessoais, como ir ao dentista, médico, levar filhos e amigos a compromissos particulares.
Advogados de Rose, Osório e Zimmer conseguiram recentemente a suspensão de depoimentos que seriam coletados no processo, para que tivessem acesso aos autos e colhessem informações “necessárias ao direto de defesa de Rosemary”, informaram ao GLOBO neste sábado. Eles pediram a anulação da sindicância, por entender que houve “cerceamento de defesa” de Rose.
— Rosemary não foi ouvida na sindicância, na medida em que camuflaram sua condição de investigada, chamando-a de testemunha e, com isso, negaram acesso aos autos por parte do anterior defensor constituído — afirmaram, mencionando a Súmula 14 do STF, que garante ao advogado ter acesso amplo a elementos de prova documentados em procedimento investigatório e que diga respeito ao exercício do direito de defesa.
Os defensores criticaram, ainda, o vazamento “de dentro do próprio do governo federal” de informações que eles consideram “distorcidas para os meios de comunicação social agredirem a imagem de Rosemary”.
Investigação realizada pela Polícia Federal e o Ministério Público Federal, no âmbito da Operação Porto Seguro, mostrou que Rose patrocinou lobbies e ajudou uma quadrilha que vendia pareceres a empresários, em troca de vantagens. De acordo com a PF e o MPF, a ex-funcionária usou sua influência para falsificar um atestado de capacidade técnica para a empresa New Talent, do marido e, com isso, a empresa conseguiu um contrato de R$ 1,1 milhão com uma subsidiária do Banco do Brasil.
(Veja, O Globo)
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