União foi categórica ao impor legalidade e moralidade como princípios mandatórios da administração pública.
A corrupção é um vício insistente da democracia brasileira. A inacabada Operação Lava-Jato bem que tentou, mas, infelizmente, por complexas razões entrecruzadas, não conseguiu impor a decência como valor inegociável da política nacional. Nesse contexto defectivo e, em especial, por 2022 ser ano eleitoral, cumpre analisar a juridicidade de candidaturas lesivas à moral pública.
Exemplificativamente, aqueles que envolvidos em atos ou práticas de corrupção pretérita teriam legitimidade constitucional para pleitearem mandato popular? Em outras palavras, a natural dinâmica democrática, elevando a dignidade do povo e a honra das instituições, permitiria retrocessos atentatórios à ética e aos bons costumes? Ou será o estar na política um imperativo de probidade modelar?
As perguntas acima, por instigantes e não menos polêmicas, merecem detida análise. Inicialmente, cumpre destacar que a Constituição, além do marco legal máximo da nação, é a norma ética da República. Por desiderato lógico normativo, a constitucionalidade envolve, assim, uma simbiose formativa entre justiça teórica e razão prática, impondo aos agentes de poder o dever de fazer o certo e exaltar o justo. Para tanto, a Lei Maior foi categórica ao impor a “legalidade” e a “moralidade” como princípios mandatórios da administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios (art. 37). Ou seja, defender uma legalidade imoral ou uma moralidade ilegal traduz antítese insustentável em favor de profanas teses de amesquinhamento constitucional.
Sobre o dever de moralidade pública, a Suprema Corte já decidiu que “a atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa. Esse postulado fundamental, que rege a atuação do Poder Público, confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos sobre os quais se funda a ordem positiva do Estado”; adiante, ao analisar a possibilidade de controle judicial sobre pretensões imorais, afirmou-se que “o princípio constitucional da moralidade administrativa, ao impor limitações ao exercício do poder estatal, legitima o controle jurisdicional de todos os atos do Poder Público que transgridam os valores éticos que devem pautar o comportamento dos agentes e órgãos governamentais” (STF, Pleno, j. 05.06.2002).
Logo, em um ambiente institucional de seriedade normativa e lisura de procedimentos, aqueles que já praticaram erros políticos graves — homenageando a ilicitude ao invés da retidão de condutas — não dispõem de predicados morais necessários ao alto encargo da representação popular. Ao estabelecer a “filiação partidária” como condição de elegibilidade (art. 14, §3°, V), a Constituição de 1988 impôs aos partidos políticos a tarefa fundamental de preparar e selecionar candidatos moralmente aptos ao exercício sério e decente da confiança outorgada pelo povo. Se os partidos falham ou são coniventes com candidaturas indignas, isso não significa que os imperativos éticos e jurídicos da Constituição perderam validade. Ao contrário, tal traição institucional dos partidos impõe aos órgãos de controle, em especial àquele encarregado pela guarda constitucional, o dever de tutelar a moral pública, coibindo manobras políticas espúrias com vistas a fraudar a ética e a dignidade democrática.
Frisa-se que, ao versar sobre o conceito constitucional de inelegibilidade, a Lei Fundamental remeteu o dissecar da matéria ao legislador complementar, fazendo questão de realçar que a legislação tem por finalidade “proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta” (art. 14, §9°, CF). Portanto, (i) se determinada candidatura ensejar improbidade, haverá inelegibilidade potencial; (ii) se a vida pregressa do candidato indicar imoralidade, haverá inelegibilidade em curso; e, (iii) se houver traços substantivos de influência econômica indevida ou abuso de poder, também haverá inelegibilidade em potência.
Numa sentença: candidaturas imorais são inconstitucionais, atraindo obrigatória inelegibilidade do respectivo postulante.
Em precedente de luz, a colenda Suprema Corte já decidiu que “a ruptura dos vínculos de caráter partidário e de índole popular, provocada por atos de infidelidade do representante eleito (infidelidade ao partido e infidelidade ao povo), subverte o sentido das instituições, ofende o senso de responsabilidade política, traduz gesto de deslealdade para com as agremiações partidárias de origem, compromete o modelo de representação popular e frauda, de modo acintoso e reprovável, a vontade soberana dos cidadãos eleitores, introduzindo fatores de desestabilização na prática do poder e gerando, como imediato efeito perverso, a deformação da ética de governo, com projeção vulneradora sobre a própria razão de ser e os fins visados pelo sistema eleitoral proporcional, tal como previsto e consagrado pela Constituição da República” (STF, Pleno, j. 04.10.2007).
Como se vê, a “infidelidade ao povo” constitui aberta subversão das instituições republicanas, fraudando a legitimidade do voto popular. E não existe fraude política mais grave do que o estabelecimento de um sistema corrupto de poder. Objetivamente, a prática de corrupção ou a omissão em combatê-la configura imperdoável violação aos preceitos da decência e honestidade pública, ensejando governos imorais que, para fins de enriquecimento ilícito, usam e abusam da inocência do povo, divorciando-se da lei e da honra. Ora, além de repudiar o ilícito e a corrupção em todas as formas, a ética republicana impõe ao corpo político constituído o dever de otimização de condutas e contínuo aprimoramento institucional, impedindo a implantação de retrocessos danosos à democracia, à legalidade e aos costumes sociais.
Sobre o ponto, o egrégio STF já decidiu que o “princípio da proibição de retrocesso político há de ser aplicado tal como se dá quanto aos direitos sociais, vale dizer, nas palavras de Canotilho ‘uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo. (…) o princípio em análise limite a reversibilidade dos direitos adquiridos em clara violação do princípio da proteção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana’”, vindo ainda asseverar que “o cidadão tem o direito a não aceitar o retrocesso constitucional de conquistas históricas que lhe acrescentam o cabedal de direitos da cidadania” (STF, Pleno, j. 19.10.2011).
Por tudo, a existência de uma ordem política proba, lícita e honesta é um dos mais caros direitos da cidadania democrática, inadmitindose retrocessos de qualquer natureza. Aqui, não há espaço para compadrios ou composições de empreitada. A ética republicana não permite afrouxamentos nem relativismos casuais. Mas se o improvável acontecer e, o povo quiser eleger um político imoral? A resposta está na sabedoria superior de Gustavo Zagrebelsky que, em página lapidar, bem expôs que “a justiça constitucional protege a república e, portanto, limita a democracia”. Ou será que o voto pode tudo?
Sebastião Ventura P. da Paixão Jr
Fonte: “Jota”, 19/01/2022
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
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