Reportagem de Gabriela Carelli, Álvaro Leme, Bela Megale, Carlos Giffoni, Carolina Melo e Kalleo Coura publicada como capa de edição impressa de VEJA
A REVELAÇÃO PÚBLICA DE DANIELA
Ao anunciar a união com uma jornalista de televisão, a quem chama de esposa, a cantora baiana Daniela Mercury tornou obrigatória a discussão sobre o casamento gay no Brasil
“Seja o que Deus quiser, Malu.” Daniela Mercury olhou para a companheira, em um quarto de hotel de Lisboa, onde esteve na semana passada para uma série de shows, tocou no ícone compartilhar do Instagram e pôs no ar uma colagem de fotos dela com a jornalista Malu Verçosa, editora na TV Bahia, afiliada da Globo.
No cabeçalho, escreveu a frase que provocaria mais de 17 000 reações de “curtir” coladas à revelação: “Malu agora é minha esposa, minha família, minha inspiração pra cantar”.
E o Brasil inteiro ficou sabendo que ela saíra do armário, como se diz no jargão popular para definir a pessoa que assume sua homossexualidade, e que decidira trocar alianças – mas ainda não assinar papéis no cartório – com a namorada recente, de apenas dois meses e meio (na cronometragem oficial, descontado o período de segredo).
Houve estardalhaço – saiu no Jornal Nacional. Daniela – mãe de dois filhos já adultos, do primeiro casamento, e de outros três adotados, do segundo, ambos relações convencionais – nunca admitira sua orientação sexual. Seja o que Deus quiser, portanto.
Mas Deus vai querer?
Se depender da hierarquia das igrejas que falam em nome Dele, a resposta será um sonoro “não” dos líderes evangélicos brasileiros, um “sim” enfático dos anglicanos e um “sim” condicional dos católicos.
“Se Deus, na criação, correu o risco de nos fazer livres, quem sou eu para me meter?”, foi a reação do jesuíta Mario Bergoglio, o papa Francisco, sobre o casamento gay em seu diálogo com o rabino Abraham Skorka.
Bergoglio elabora sua resposta e diz que o papel do pastor é alertar o fiel para os perigos de pecar e nunca induzi-lo a determinado tipo de ação na vida privada.
Mas, pelo menos até que Ele a convoque para um acerto de contas, Daniela tem pouco com que se preocupar com as repercussões religiosas de seu anúncio. O casamento gay tem hoje mais implicações de ordem prática do que de consciência.
Depois do anúncio, Daniela divulgou uma nota na qual citou o deputado Marco Feliciano (PSC-SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Escreveu a cantora: “Numa época em que temos um Feliciano desrespeitando os direitos humanos, grito meu amor aos sete ventos. Quem sabe haja alguma lucidez no Congresso Brasileiro”.
Ao misturar seu relacionamento com política, Daniela prestou um desserviço ao mesmo tempo ao romantismo e à sua seriedade de propósitos.
O presidente do STF, Joaquim Barbosa, ajudou a pôr a questão Feliciano em sua real perspectiva durante uma palestra na Universidade de Brásília:
– É simples: o deputado Marco Feliciano foi eleito pelos seus pares para assumir determinado cargo dentro do Congresso Nacional. Perfeito. Agora, a sociedade tem direito de se exprimir contrariamente à presença dele nesse cargo. Isso é democracia.
É natural e positivo que as instituições tratem as mudanças comportamentais radicais com a cautela devida. É natural e positivo também que as pessoas possam ter tempo para se acostumar com esses novos ordenamentos sociais e avanços comportamentais.
É assim que as mudanças se legitimam, superando a intolerância, que se dilui com o tempo em formas cada vez mais brandas de rejeição até se tornarem invisíveis.
Confrontada com a questão do casamento gay, a Suprema Corte dos EUA optou pela cautela. Pediu mais tempo para que os juízes avaliem todas as repercussões de um cada vez mais provável reconhecimento legal de uma situação de fato.
No Brasil, o STF reconheceu a união estável gay em 2011.
A partir de então, parceiros do mesmo sexo numa relação contínua e duradoura, com o objetivo principal de constituir família, podem receber herança em caso de morte de um dos dois, receber pensão alimentícia, optar pela comunhão parcial de bens, e também adotar crianças.
Em seis estados brasileiros (Alagoas, Bahia, Ceará, Mato Grosso do Sul, Paraná e São Paulo) os cartórios já fazem o casamento civil homossexual, o que põe os casais juridicamente um degrau acima do status de união estável. Cerca de 400 casais gays brasileiros conseguiram a certidão de matrimônio desde o “sim” do STF. Esse número só tende a crescer.
É discernível uma tendência evolutiva rumo à aceitação no que diz respeito aos homossexuais. O que já foi visto como doença física no passado foi em uma fase posterior encarado como comportamento desviante provocado por defeito de criação – ou seja, produto de lares com mães superprotetoras e pais ausentes e violentos.
As concepções erradas davam origem às reações sociais desastradas. A “rebelião de Stonewall”, os seis dias de confronto entre policiais e gays, em Nova York, ocorreu há pouco mais de quarenta anos. Desde então os gays deixaram de ser caso de polícia.
Os estudiosos desvendaram o peso da determinação genética, o que esvaziou as falsas considerações morais sobre eles. Recentemente a homossexualidade tem sido descrita como uma adaptação evolutiva da espécie. Isso significa que muitas sociedades não apenas deixaram de ser hostis aos gays como passaram a ver contribuições positivas para o grupo na existência deles.
“A homossexualidade representa diversidade e ela é sempre positiva para a sociedade”, diz Edward Wilson, o grande biólogo americano de Harvard, autor de um livro recente, A Conquista Social da Terra, que funde de maneira inédita as análises genéticas e culturais do comportamento humano.
Wilson põe a homossexualidade em campo diametralmente oposto, por exemplo, ao do incesto, este, sim, um desvio comportamental que não apenas abala o edifício moral das sociedades como empobrece a diversidade genética tão necessária para a sobrevivência sadia da espécie humana.
Wilson diz que isso explicaria as razões da crescente aceitação da homossexualidade em contraste com a existência consentida do incesto somente em alguns pontos isolados da África e da Ásia – ainda assim com aceitação apenas ritualística em casamentos de chefes tribais.
O mesmo processo sociogenético-cultural que, como demonstra Edward Wilson, vem chancelando a homossexualidade atua fortemente na rejeição da pedofilia e da poligamia.
O que a biologia evolutiva constatou pelo método científico as pessoas percebem no cotidiano. Quanto mais jovem o grupo, menos seus integrantes consideram homossexualidade um assunto polêmico.
Os jovens em quase todas as partes são cada vez mais o que os sociólogos chamam de “gender blind” – ou seja, eles olham uma pessoa, percebem que tipo de roupa ela usa, que corte de cabelo, mas se a pessoa é gay ou não é um ponto que não chama atenção.
O casamento gay coloca um desafio de outra ordem. Não se trata mais da simples aceitação pelo grupo de adolescentes ou jovens adultos – mas do reconhecimento pelas instituições de que os direitos civis podem ser automaticamente aplicados aos relacionamentos homossexuais duradouros.
Isso é mais complexo.
Esse processo exige que vanguardas e maiorias conservadoras realizem uma tensa dança do acasalamento até que a intolerância se dissolva em rejeição e essa em aceitação legal – o que não significa que os dois lados vão despertar um dia depois da aprovação da eventual legalização do casamento gay concordando sobre todas as questões.
Mas esse processo de negociação é inevitável.
É da natureza humana que as minorias liderem as transformações, na vanguarda, e que as maiorias, sempre mais apegadas ao que já existe, se incomodem. Impossível é fugir da existência de uma novidade que exclui a indiferença.
Foi assim com o divórcio e com o movimento em defesa do voto feminino, no início do século XX, nos EUA e na Inglaterra.
As mulheres já tratavam de política dentro de casa, opinavam sobre o cotidiano com o marido – mas o salto só se deu com a aprovação legal do voto. É o que ocorre agora com o ingresso do casamento gay nos tribunais.
Se a aprovação da união homossexual fosse simplesmente a institucionalização de uma postura que já estava acontecendo entre quatro paredes, seria mais fácil crer que essa transformação se daria de modo ainda mais acelerado.
Mas há um complicador. Como estender aos gays as proteções legais dadas ao casamento pelo simples fato de ele, ao fim e ao cabo, propiciar a perpetuação da espécie pela procriação?
As pesquisas de opinião no Brasil mostram que nem mesmo a adoção de crianças ou o recurso a barrigas de aluguel ou inseminação artificial demovem a maioria heterossexual da convicção de que os casais gays são incapazes de criar um lar estável.
Nos EUA a resistência é bem menor, mas a questão ainda está longe de ser unanimidade. “Parece-me que os gays estão lutando pelo casamento. Eu receio que isso signifique rebaixar o que é o casamento”, disse o ator inglês Jeremy Irons ao site noticioso Huffington Post.
Além da intolerância e agressividade dos militantes, há descontentamento de bom número de pessoas com a redução de questões éticas de alta complexidade – caso também do aborto e da eutanásia – a uma simples luta por direitos.
Escreveram os especialistas em ética Claire Andre e Manuel Velasquez: “Muitas controvérsias morais hoje se expressam na linguagem dos direitos. Há uma explosão de recursos pelos direitos dos homossexuais, direitos dos prisioneiros, direitos dos animais, direitos dos não fumantes e dos fumantes, direitos dos fetos e direitos dos trabalhadores”.
O reconhecimento do direito dos homossexuais perante as leis é, portanto, apenas um aspecto de uma questão social de consequências ainda não totalmente conhecidas. Mas apenas fingir que o novo não existe é insuficiente para preservar o velho.
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