Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

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Somos reféns da má consciência que santifica bandidos, tomando-os ou como vítimas passivas das condições sociais ou como militantes involuntários da igualdade

Vejam este desenho do cartunista Henfil. Logo entenderão por que ele está aí. Volto em seguida.

Você que trabalha, você que estuda, você que estuda e trabalha, nós todos, enfim, somos reféns da má consciência disfarçada ou de generosidade humanista ou de sociologia da reparação, que permitem que facinorosos fiquem por aí, à solta, matando pessoas de bem. Vamos lá.

No texto que publiquei na tarde de ontem sobre a prisão dos assassinos da dentista Cinthya Magaly Moutinho de Souza, escrevi: “A depender de como caminhem as coisas, bastará, para aliviar parte da punição dos outros, que o menor assuma a responsabilidade. A sua ‘não-pena’ já está definida.” Na mosca! Adivinhem o que aconteceu… Em depoimento à polícia, o tal menor assumiu a responsabilidade. Relatou a delegada do caso: “Ele [o menor] revelou que jogou álcool na dentista, que já estava amarrada, com as mãos para trás, e com o isqueiro ficou fingindo que iria colocar fogo para torturar. Até que, bravo porque o Jonathan [o que tinha pegado o cartão e saído para sacar dinheiro] ligou dizendo que, na conta, só havia R$ 30, disse que ‘isqueirou’ a moça e, de repente, o avental começou a pegar fogo, e ela incendiou. E ele conta isso como se estivesse falando sobre o capítulo de uma novela”.

Era evidente! O menor daria um jeito de livrar um pouco a barra de seus companheiros. Isso já se tornou parte do jogo e do risco. O covarde fará 18 anos em junho. Como praticou crime hediondo, com dois meses a mais de vida, pegaria de 12 a 30 anos de cadeia e só teria direito ao regime de progressão depois de cumpridos dois quintos. Por causa de menos de 60 dias, esse monstro asqueroso será solto daqui a três anos. E estará pronto para “isqueirar” outras pessoas. Mas não há risco de isqueirar Maria do Rosário. Não há risco de isqueirar Gilberto Carvalho. Não há risco de isqueirar José Eduardo Cardozo. Não há risco de isqueirar Dilma Rousseff. Os seguranças não deixam. Nota: três anos é internação máxima. Pode sair antes, sim.

Era evidente que ele assumiria a culpa porque não é menos evidente que tem consciência da impunidade.

Um dia, já notei aqui, um desses esquerdistas de butique e botequim tentou ironizar o fato de eu usar esta expressão: “pessoas de bem”. Seria, segundo entendi, o emblema do meu reacionarismo, do meu direitismo, da minha crueldade com o povo… Fôssemos opor a sua biografia à minha, do povo, aquele vagabundo moral não conhece a cara, a casa, os valores, as dificuldades, os anseios… Eu conheço. Para gente assim, escrevi no dia 24 de novembro de 2011 o texto Meus heróis não morreram de overdose. Alguns dos meus amigos de infância é que morreram no narcotráfico! E foi uma escolha!

Origem social não torna ninguém certo ou errado. Mas uma coisa eu posso assegurar, e o faço com a minha experiência de vida: pobre não é sinônimo de bandido; pobreza não é sinônimo de mau-caratismo; carência não é sinônimo de violência. “Ah, mas tudo isso ajuda…”. Errado também! A bandidagem é que se aproveita da falta de estado nas áreas pobres do país e torna refém a população — majoritariamente composta de pessoas honestas. Existem pobres que não prestam. Existem ricos que não prestam. Existem remediados que não prestam. “Que diferença faz saber isso?” A diferença entre políticas públicas certas e erradas de combate à violência.

As pessoas comuns, todos nós, arcamos com o peso e com o risco de uma leitura sobre a violência que é de caráter, antes de mais nada, ideológico. A luta contra a ditadura no Brasil criou alguns mitos que se colaram à consciência dos ditos bem pensantes e lá ficam, punindo justamente os pobres que supostamente quer proteger. Lembrava-me — e acabei achando no Google, como vocês veem lá no alto — de um desenho do cartunista Henfil (1944-1988), que era, sem dúvida, um grande talento da esquerda. Morreu antes de o PT malufar… Vejam lá o “homem de bem”, com cara de plutocrata, de gravata, pançudo, assaltado por um pivete de pés descalços, com trabuco na mão. O “burguês babaca” apela, claro, a um valor não menos “burguês”: a vergonha. Vergonha? O que está de arma não mão responde: “Não! Mas tenho fome, serve?”.

Os que se querem hoje de esquerda pararam aí. Atribuem a violência à pobreza e acham que suas agruras eliminam ou determinam os valores morais. Henfil estava longe de ser idiota. Sabia muito bem o que fazia. É evidente que seu desenho é uma metáfora — ou, mais apropriadamente — metonímia da luta de classes e, por óbvio, da luta armada. A decadência do marxismo e a inviabilidade do socialismo, de que o PT é a expressão mais eloquente, fizeram com que os neoesquerdistas passassem a confundir a luta por justiça com o crime. Assim, meus caros, não estranhem quando mensaleiros tomam o crime como luta por justiça…

O desenho do talentoso — e ideologicamente equivocado — Henfil é uma bobagem moral, é uma bobagem ética e uma mentira histórica estúpida. Não sei a sua data exata, mas deve ser do começo dos anos 1980. Atenção! Em 1980, a taxa de homicídios no Brasil era de 11,7 por 100 mil habitantes; saltou para 26,2 em 2010. Se ela tivesse se mantido como há 33 anos, quase 28 mil vidas seriam poupadas a cada ano. Nesse período, o Brasil se democratizou, os direitos humanos passaram a ser uma prioridade das políticas públicas, a miséria foi drasticamente reduzida, o ensino fundamental se universalizou, a saúde se expandiu enormemente, a expectativa de vida do brasileiro cresceu e, não custa lembrar, o partido de Henfil foi eleito três vezes para a Presidência da República. A taxa de homicídios por 100 mil habitantes cresceu 123%.

Drogas
A polícia informa que a quadrilha pode ter cometido oito crimes, quase todos em consultórios odontológicos — há um assalto a residência. Já haviam embebido antes vítimas em álcool, ameaçando incendiá-las. Tinham método. Chegavam a visitar previamente os locais como pacientes para facilitar o, digamos, trabalho posterior. Tanto os adultos presos como os dois menores “apreendidos” (é assim que se deve escrever por causa do ECA…) — um deles não participou desse assalto, mas dava abrigo aos comparsas — são usuários de drogas. Os dois ditos adolescentes já foram flagrados pela polícia portando drogas, mas era “só para consumo” e foram liberados.

E chegamos, assim, a mais uma das fantasias daquelas elites cruéis de que falo. Uma ONG faz campanha na TV pela descriminação das drogas. Os juristas que elaboraram uma proposta de um novo Código Penal querem definir uma quantidade que vai distinguir consumo de tráfico: o suficiente para cinco dias — o deputado petista Paulo Teixeira (SP) quer dez. Ignoro se os facínoras que incendiaram a dentista (…) estavam, aquela hora, sob o efeito de alguma substância, mas não seria de estranhar.

A estupidez militante está transformando o consumidor de drogas apenas num “doente”, num “dependente”, numa “vítima”, ignorando uma obviedade estupefaciente: para financiar o consumo, com alguma frequência, também se trafica. O deputado Osmar Terra (PMDB-RS), que fez um projeto endurecendo a pena para traficantes e criando um cadastro — não é de consumidores, é mentira! — de pessoas que se submetem a tratamento para que sua efetividade possa ser testada e acompanhada está sendo demonizado, transformado em vilão. Toma-se a realidade de classes médias abastadas, onde vigora o doce laxismo da impunidade, muito especialmente com as drogas, como medida da realidade brasileira.

“Ora, Reinaldo, esse horror aconteceu com as leis que temos.” É verdade. Como sou uma pessoa lógica, parto do pressuposto de que à eventual descriminação corresponderá um aumento do consumo — como aconteceu em Portugal, realidade que vigaristas tentam esconder. E haverá mais “doidões” soltos por aí. “Talvez a dentista não tivesse morrido se aqueles caras pudessem comprar droga na padaria…” Uma ova! Eles não fazem o que fazem porque não podem comprar maconha ou crack na padaria. Eles não fazem o que fazem porque, a seu modo, lutam contra a lei antidrogas. Eles fazem o que fazem porque seu senso moral a tanto os autoriza. A depender da droga que consumam — com a descriminação, qualquer uma estaria à mão —, diminui substancialmente a distância entre matar e não matar.

Somos, reitero, reféns da má consciência que, no fim das contas, santifica o bandido, fazendo dele ou uma vítima das condições sociais perversas ou uma espécie de militante da igualdade social, ainda que possa não ter muita clareza disso.

Em nenhum país do mundo, pesquisem, a vida humana é tão barata como no Brasil. Em nenhum país do mundo o coro na imprensa em favor de penas menores para bandidos é mais forte e audível do que o de suas vítimas reais ou potenciais. Aprendemos a tratar delinquentes como heróis e já chegamos ao requinte, na campanha do desarmamento, de tratar “pessoas de bem” como bandidas. Três anos! É o tempo que nos separa do risco de topar na rua com o assassino de Victor Hugo Deppman ou de Cinthya Magaly Moutinho de Souza. Eles reconhecerão a nossa cara, a universal cara das vítimas. Mas nós estaremos impedidos de reconhecê-los.

Para encerrar: a falta de vergonha pode levar alguém a apontar uma arma para assaltar o outro. A fome não!

Por Reinaldo Azevedo

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