Se não tivesse caído tanta chuva no último mês, este ano poderia ser de fortes ganhos para os produtores de cereais em Portugal. Ao contrário, poderá ser particularmente mau para os consumidores, que deverão ver subir ainda mais os preços de bens essenciais como o pão, a carne ou o leite.
Os preços das matérias-primas agrícolas estão em alta e a subir, mas o excesso de chuva acabou por ser nefasto para as sementeiras de outono. A salvação do ano agrícola poderá estar nas sementeiras de primavera.
"Se estas correrem bem, os agricultores vão certamente sair a ganhar", nota Vasconcelos e Sousa, presidente da Associação Nacional dos Produtores de Milho e Sorgo (ANPROMIS).
Em termos internacionais o cenário pode ser bem mais ameaçador. É que, segundo Abdolreza Abbassian, economista-chefe da FAO - Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação, é muito provável que os preços dos bens alimentares continuem a subir, devido à escalada dos valores das matérias-primas. "Se, por exemplo, as condições climáticas se traduzirem numa seca, na Argentina, e se começarmos a ter problemas com o frio no hemisfério norte, a danificar as sementeiras de trigo, então tudo será pior". Explica que está preocupado e a verdadeira razão para isso é a imprevisibilidade das colheitas. A tudo isto não será também estranho o facto de a população mundial estar a ficar cada vez mais urbana, com menos gente a produzir e mais a consumir.
Vasconcelos e Sousa concorda e reforça que com as alterações climáticas a atividade agrícola em geral ficou muito mais vulnerável. Nota que não há, neste domínio, uma procura perfeita e que, normalmente, "quem tem fome não tem dinheiro e quem tem dinheiro não tem fome". Defende ainda que estes mercados deviam ser regulados, até porque cada vez mais se assiste à entrada de especuladores financeiros neste domínio e que nada têm a ver com agricultura.
Se há uma relação direta entre a ação dos especuladores e o aumento dos preços ou não, não se sabe ao certo. Seguro, é que o indicador de preços da FAO para 55 matérias-primas alimentares alcançou no mês passado os 214,7 pontos, acima do anterior máximo de 213,5 pontos registado em junho de 2008, no pico do disparo dos preços das commodities (mercadorias transacionadas em bolsa) anterior à falência do Lehman Brothers e ao agravar da Grande Recessão.
Mas o ano passado não foi apenas de subidas nos preços agrícolas. Praticamente, todas as commodities dispararam. Os mercados trocaram as voltas aos economistas em 2010. Os analistas passaram parte do ano que findou embrenhados a discutir se haveria uma recaída na recessão (a célebre expressão americana double-dip), enquanto os grandes investidores institucionais nas matérias-primas e nos metais preciosos amassaram fortes ganhos especulativos.
O índice das commodities, do Commodity Research Bureau Index, disparou 67% entre o ponto mais baixo em 2009 e o final de 2010. Os campeões da subida de preços em 2010 foram o algodão (mais de 98%), o café (mais de 54%), o milho (quase 39%) e o cobre (cerca de 34%), apesar do maior mediatismo que recolheram o trigo (seca da Rússia) e o açúcar (ainda recentemente nas prateleiras dos supermercados).
No centro das atenções esteve o ouro, que viu o preço da onça subir de 1117 dólares em janeiro para 1422 a 31 de dezembro, batendo sucessivos máximos históricos em valor nominal ao longo do ano. Mas, completamente esquecida pelos media esteve a prata, que aumentou quase 70% - o que compara com 25% para o caso do ouro. A onça de prata subiu de 18 dólares no início do ano passado para quase 31 no final do ano. Este metal precioso procedeu ao longo de 2010 a uma correção na sua relação com o metal amarelo. Em janeiro de 2009, uma onça de ouro valia 77 onças de prata, mas em dezembro do ano passado o rácio desceu para cerca de 50, e a tendência continua em baixa, ainda que muito longe da relação histórica de 15 onças de prata para uma de ouro.
André Ribeiro, analista da BonsInvestimentos.com, diz que ao longo do ano que agora começa, tanto o ouro como a prata irão passar por fortes correções, o que pode resultar em excelentes oportunidades para comprar. "Mas para os próximos 18 meses estima-se que o preço da onça de ouro possa passar dos atuais 1400 para 2000 dólares, e da prata dos 29/30 para 40". Por seu lado, Bill Witherell, economista-chefe da Cumberland Advisors, não deixa de sublinhar o papel da financeirização extrema dos mercados de commodities como um facto novo na última década. Witherell chama a atenção para o papel dos fundos de investimento conhecidos pela designação técnica de Exchange-Trade Funds (ETF, no acrónimo) cujo apetite por commodities tem disparado. Um dos 'motores' desta financeirização é o excesso de liquidez global. Entre 2000 e a primeira metade de 2008, este excesso aumentou 71% e as políticas posteriores de combate à crise por via orçamental e monetária alimentaram a injeção brutal do que muitos chamam 'dinheiro quente'.
Para muitos analistas, esta tendência especulativa não vai, por isso, abrandar. Para o professor Luís de Sousa, editor português do The Oil Drum, poderá mesmo ocorrer um "pânico" a iniciar no mercado da prata, que conduza a um disparo extraordinário dos preços nos metais preciosos e depois, por arrasto, em todas as commodities. Algo similar ao que ocorreu no mercado da prata e depois do ouro em finais de 1979 e em 1980. No caso de um pânico deste tipo, os bancos centrais terão de intervir radicalmente. Mas os analistas não arriscam que políticas, então, poderão ser tomadas.
O reverso da medalha deste disparo nas bolsas de commodities foi a hiperinflação em diversos bens alimentares e nos fornecimentos a vários sectores industriais. A China pode ser apontada como um caso paradoxal. Segundo o Ministério do Comércio daquele gigante asiático, 18 produtos agrícolas em 36 cidades principais viram os preços crescer 62,4% nos primeiros dez dias de novembro em relação a igual período do ano passado.
No cabaz mensal das famílias e nas contas das empresas, a outra commodity que pesa é o petróleo. No caso da variedade de referência na Europa, o Brent, o preço do barril de crude aumentou quase 14% no ano passado, subindo para quase 95 dólares no final do ano, um valor que já não se via desde março de 2008.
O preço do barril de petróleo não está no "clube" das commodities que mais subiram em 2010. A variação anual do preço da variedade Brent, de referência na Europa, foi de 14%, mas o suficiente para "saltar" de patamar de preços.
De pouco mais de 83 dólares em janeiro para quase 95 dólares no final de dezembro passado. O preço continua com oscilações diárias - por vezes 'selvagens', de mais de 2% para cima e para baixo - mas mantém-se perto dos 95 dólares. Numa observação mais longa, o preço do barril subiu 43% entre dezembro de 2008 e dezembro de 2010, mas está, ainda, longe dos máximos de junho e julho de 2008, que se situaram acima de 130 dólares de preço médio mensal. As causas desta volatilidade do preço do barril de crude continuam a encher muitas páginas de artigos científicos.
O mais recente trabalho de Serhan Cevik e Tahsin Saadi Sedik, especialistas do Fundo Monetário Internacional, aponta para duas razões de peso que surgem estatisticamente com significado: a mudança na procura agregada mundial com a dinâmica imprimida pelo crescimento do consumo de petróleo pelas economias emergentes, que são menos eficientes do que as economias avançadas, e a especulação financeira gerada pelo excesso de liquidez global.
Os dois autores sublinham que o papel do aumento da procura representará 2/3 da explicação do disparo dos preços entre 1998 e 2010, mas não deixam de acentuar o papel crescente da financeirização dos mercados de commodities, incluindo o célebre mercado dos 'barris de papel'.
Recorde-se que as economias emergentes já representaram 47% da procura do petróleo em 2009 e que o consumo dessas economias entre 1990 e 2008 implicou 69% do aumento mundial de consumo dos barris de crude, referem os dois autores em "A barrel of oil or a bottle of wine: how do global growth dynamics affect commodity prices", divulgado esta semana.
FONTE: http://aeiou.expresso.pt/alimentos-escalada-de-precos-vai-continuar...
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