Os números, levantados pelo Instituto Nacional de Recuperação Judicial (INRE), refletem a dificuldade do País de retomar um crescimento mais vigoroso. O ano começou com previsões otimistas de recuperação judicial, mas foi atropelado pela greve dos caminhoneiros, que abalou a confiança dos empresários. A frustração com o crescimento fez os pedidos de recuperação voltarem a crescer. De janeiro a setembro, o número subiu quase 10% comparado ao ano passado, de 898 para 985.
Isso ajuda a explicar o crescimento da inadimplência com o Fisco. Ao primeiro sinal de dificuldade, as empresas deixam de pagar os impostos para depois buscarem programas de refinanciamento, como o Refis. “Em muitos casos, o passivo fiscal é igual ou maior do que os débitos com bancos e fornecedores”, diz Renato Carvalho Franco, sócio da Íntegra Associados, consultoria de recuperação empresarial.
Pela legislação, os débitos fiscais não são incluídos na recuperação judicial e são tratados diretamente com o Fisco. No âmbito judicial, são renegociadas dívidas financeiras, comerciais e trabalhistas com base numa previsão de fluxo de caixa futura. Mas, quando começam a cumprir o plano, as empresas se deparam com uma dívida total maior do que a renegociada.
O passivo das empresas em recuperação é de R$ 325 bilhões, enquanto a dívida fiscal soma R$ 455 bilhões. O que significa que, no total, elas devem R$ 780 bilhões. “Sem incluir os débitos fiscais, a conta não fecha. Não é uma renegociação real e não resolve o problema”, afirma a sócia do escritório Felsberg Advogados, Fabiana Solano. Isso explica parte da dificuldade que as empresas têm para sair de uma recuperação e para pagar os impostos em dia.
“O problema é que os grupos aderem ao programa, pagam as primeiras parcelas e voltam a atrasar os pagamentos”, diz o desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e conselheiro fundador do INRE, Carlos Henrique Abrão. Em julho deste ano, a Receita Federal cancelou as adesões de mais de 700 contribuintes a programas de regularização tributária por não pagarem as parcelas em dia. No caso da recuperação judicial, há um programa da Receita de parcelamento em 84 vezes. “Mas, as empresas pouco usam, pois é mais vantajoso aderir aos parcelamentos especiais”, diz a Receita, em nota.
Revisão cresce 50%
O fraco desempenho da economia brasileira tem obrigado empresas e credores a voltarem à mesa para renegociar os planos de recuperação judicial aprovados no passado. O movimento, que tem sido chamado de recuperação das recuperações, cresceu 50% neste ano e pode continuar subindo se as empresas não conseguirem reequilibrar seus negócios, segundo o Instituto Nacional de Recuperação Empresarial (INRE).
A onda de revisões é explicada por projeções frustradas. A maioria dos planos desenhados no passado considerava que, nesta altura do ano, a atividade econômica já estaria mais forte e as empresas com um fluxo de caixa robusto o suficiente para iniciar os pagamentos previstos. “O ano começou promissor, mas o cenário degringolou com a greve dos caminhoneiros; o consumo voltou a diminuir e o caixa das empresas foi novamente afetado, num momento em que o período de carência (para pagar as dívidas) estava prestes a vencer”, afirma Eduardo Sampaio, diretor da consultoria Alvarez & Marsal.
Como o descumprimento do plano de recuperação leva à falência, vários grupos anteciparam as conversas para melhorar as condições do plano original. Segundo o levantamento do INRE, os setores que têm sido mais ativos na revisão das recuperações são comércio e agronegócio, especialmente as usinas de açúcar e álcool. A Aralco, grupo que têm usinas no oeste paulista, é uma delas.
A empresa entrou em recuperação judicial em maio de 2014 e teve o plano aprovado em dezembro do mesmo ano. Quando o plano foi desenhado, o dólar estava na casa de R$ 2,50 e o desempenho da economia já estava em queda. Naquele ano, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 0,5%. E nos dois anos seguintes, despencou: 3,5% em 2015 e o mesmo porcentual em 2016.
Hoje – com o dólar em torno de R$ 4 e uma economia que ainda não decolou – a companhia tenta revisar seu plano de recuperação por conta das projeções frustradas. O grupo, que não quis falar do assunto, conseguiu aprovar uma proposta, mas foi contestado por um credor, que entrou na Justiça.
A revisão de um plano de recuperação não é simples. Não basta querer renegociar. É preciso também ter o aval da Justiça para convocar uma nova assembleia, além da disposição dos credores para rediscutir as propostas. “O problema é que os devedores já chegam para essa nova rodada de negociações enfraquecidos, sem poder de barganha já que os balanços estão no limite”, diz o sócio da Íntegra Associados, Renato Carvalho Franco.
Por outro lado, os bancos têm preferido empurrar o problema para frente para ver se os negócios melhoram. As negociações têm envolvido especialmente o alongamento dos prazos de pagamento da dívida que estão para vencer – ou já venceram -, afirma o advogado Sergio Emerenciano, da Emerenciano, Baggio & Associados. Mas, segundo ele, há casos em que os credores concedem novos descontos no saldo devedor e incluem outras alternativas, como a venda de ativos para abater a dívida, uma fusão, o arrendamento de um braço da empresa ou a entrada de um novo investidor.
Planos irreais
Para o desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Carlos Henrique Abrão, responsável pelo levantamento do INRE, o aumento das revisões é resultado tanto da conjuntura econômica desfavorável como de planos irreais. “As propostas são irrealizáveis. Vemos muitos planos artificiais, feitos apenas para evitar o pagamento da dívida.” Segundo ele, isso explica também o aumento do número de empresas que estão entrando em falência. No ano passado, o número já havia subido 60% e neste ano, mais 58%.
Domingos Refinetti, da Stocche Forbes, avalia que o problema também é decorrente dos prazos. As empresas optam tarde pela recuperação judicial e depois demoram para ter seus planos aprovados. “E isso ocorre porque o devedor já não tem condições de apresentar um plano bem feito.” A advogada Fernanda Neves Piva, do escritório Machado Meyer, tem o mesmo entendimento. Segundo ela, há casos em que os planos são aprovados um ano após a apresentação. “Nesse prazo, a economia pode ter se agravado e as condições deixam de ser uma realidade.”
Por causa dessa demora, poucas recuperações são encerradas no prazo definido em lei, que é de dois anos. Outro fator importante que contribui para isso, diz o advogado do escritório Demarest, Guilherme Bechara, é que as empresas não reestruturam o negócio. Ou seja, renegociam a parte financeira e não mexem no operacional, que poderia reverter os resultados.
‘Dívidas empurradas com barriga’
Um dos principais especialistas em reestruturação de empresas do País, o advogado Eduardo Munhoz acredita que há um incentivo no Brasil para que as situações de dívidas sejam “empurradas com a barriga”, na tentativa de se evitar decisões difíceis, como assumir e dividir o prejuízo entre companhia, sócios e investidores. Para o advogado, que esteve à frente de casos emblemáticos – como o da empreiteira OAS, da operadora Oi e do Grupo EBX, de Eike Batista -, diante de uma companhia em crise, é preciso adequar o tamanho da dívida à nova realidade. “Só assim ela pode se dedicar a trabalhar e ter chance de novo de crescimento”.
Como as companhias brasileiras chegaram a esse nível de endividamento?
O Brasil saiu muito rapidamente de um momento de grande otimismo para uma forte crise, o que fez com que boa parte das empresas passasse a ter uma estrutura de dívidas incompatível com a capacidade de geração de caixa. No auge, as companhias brasileiras nunca tinham tido acesso a tantas fontes de financiamento – da onda de aberturas de capital ao aumento enorme da emissão de dívida, aqui e no exterior. Mas, com a crise, ficou claro que os projetos de crescimento que suportavam essas captações eram, em sua maioria, inexequíveis.
Por quê?
Eles se baseavam na expectativa de que o Brasil iria crescer a taxas muito elevadas, baseadas sobretudo no aumento do mercado interno.
As dívidas foram feitas com o pressuposto de que as empresas seriam muito maiores.
Mas ficaram muito menores. O risco faz parte do negócio, e o insucesso, do jogo. Mas esse insucesso deve ser partilhado entre os envolvidos. Não são apenas o sócio, os administradores, os executivos das empresas; mas também o banco, o investidor. Todo mundo, ao tomar suas decisões, errou em alguma medida.
A perda tem de ser dividida?
A lição que tiramos de economias resilientes, com capacidade de reagir rápido a crises, é assumir os prejuízos, zerar o jogo e começar de novo. É o que faz girar a economia. É duro, mas pior que não realizar a perda, é prolongá-la. Na crise de 2008, os EUA reestruturaram US$ 3,5 trilhões em dívidas em dois anos. Isso é uma divisão de perdas: se a empresa ficou menor e a dívida maior, não tem como pagar. É preciso adequar o tamanho da dívida à nova realidade da empresa para que ela possa trabalhar e ter chance de crescer de novo.
Isso não é possível no Brasil?
O crédito corporativo nunca teve grande peso no resultado dos bancos. O Brasil não tem tradição de grandes fontes de financiamento privado nem em como maximizar a recuperação do crédito de empresas em crise. Até pouco tempo, era apenas o departamento de contencioso do banco que lidava com companhias em reestruturação.
Que outras deficiências prejudicam a recuperação?
Uma empresa em crise tem muitas dificuldades em acessar novas fontes de financiamento e investimento. Isso faz com que ela evite ao máximo pedir a recuperação. Quando pede, está tarde demais. O sistema judiciário, que permite recursos infinitos, também é um complicador.
O sr. citaria algum caso afetado por essas dificuldades?
O plano de recuperação da OAS foi aprovado em sete meses pelos credores, mas demorou 15 meses para ser aprovado nas diversas instâncias judiciais. Ainda na OAS, havia mais de 40 instituições interessadas em financiar a empresa tendo ações da Invepar como garantia. Mas, quando viram que havia o risco de o acordo ser anulado em recursos judiciais, só uma ficou à mesa. Não temos no Brasil o conceito, existente nos EUA, de que contratos celebrados durante a recuperação não podem ser anulados por recursos judiciais futuros.
E como ficam as empresas nesse cenário?
Há incentivo para que situações de dívidas sejam empurradas com a barriga. O que se vê muitas vezes são rodadas de reestruturação, numa boa tradição brasileira, para inglês ver. Todo mundo sabe que não vai dar certo, mas faz de conta que é uma reestruturação definitiva porque é uma maneira de ninguém tomar uma decisão difícil. Mais pra frente, pode ser impossível salvar a empresa. Ela morre aos pouquinhos; são as empresas zumbis, que são péssimas para economia e para a sociedade.
Em que sentido?
Não têm capacidade de investimento, de inovação, perdem toda energia apagando incêndio. Além disso, travam o investimento. O investidor estrangeiro que quer comprar um negócio no país, em geral procura empresas estabelecidas para adquirir, porque é difícil começar do zero. O País afasta investidores com maior grau de exigência de compliance, sofisticação e diversificação.
O sr. cita questões culturais que dificultam os processos de reestruturação.
Há o conceito de “capital cívico”, de cumprimento voluntário de regras éticas, que tem relação direta com o nível de desenvolvimento econômico-social de um país. Você confia na pessoa com quem está negociando? No Brasil, apenas 9% confiam, contra 68% na Suécia. Isso diz muito do nosso ambiente regulatório e de negócios. Enquanto não conseguirmos inverter isso, por melhor que seja a lei, é difícil mudar.
E é possível?
Muitos países, EUA entre eles, têm em sua história uma época marcada por corrupção, que aos poucos deu lugar a um capitalismo baseado na regra da lei, o chamado Estado de Direito, na impessoalidade e meritocracia. A Lava Jato, a despeito de alguns excessos, talvez possa ser um ponto de inflexão.
Excessos de que tipo?
Há uma preocupação, mesmo na Lava Jato, de preservar as empresas, mas não é um conceito arraigado no Brasil. Nos EUA, o Departamento de Justiça americano (DoJ), quando faz acordos de colaboração, tem um conceito ability to pay: as punições às empresas obedecem a uma régua que não leva em conta só o tamanho do dano, mas também a capacidade da companhia de pagar. A ideia é punir os responsáveis, mas não matar as empresas.
Fonte: Jornal O Estado de Minas
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