Nobel da Paz e homenageada com o LionsHeart este ano, ativista criticou a atuação das big techs e seus efeitos sociais nas esferas individual e coletiva.
Eleita Nobel da Paz em 2021, três anos depois, Maria Ressa, ativista pela liberdade de imprensa nas Filipinas, onde chegou a ser presa, receberá outra grande homenagem global. O LionsHeart será conferido a ela em Cannes, na noite desta sexta-feira, 21 – o prêmio celebra a atuação de pessoas que geram impacto social no mundo.
Antes disso, pela manhã, ela fez uma apresentação sobre o trabalho que desenvolve e analisou questões como a atuação das big techs e os efeitos da inteligência artificial (IA) e dos algoritmos das redes sociais sobre a sociedade.
“Há muitos anos, eu disse que 2024 seria um ponto de inflexão e saberíamos, ao final deste ano, se a democracia sobreviveria ou não”, afirmou. Mas acrescentou que a esperança está em ações.
Depois de contar sobre sua origem e o Rappler, que surgiu como uma startup, e hoje é um veículo digital de notícias que está chegando aos13 anos. Disse que ao lançar o livro How to stand up to a dictator (Como enfrentar um ditador), revelando o que estava acontecendo em seu país, isso poderia ser traduzido por uma simples questão: “O que você sacrificaria pela verdade?” – a obra já foi traduzida para mais de 20 idiomas e na segunda-feira que vem será publicada na Georgia.
“Quando vocês criam e publicam sua publicidade, isso impacta todos nós no mundo. Em nenhuma outra época ouvi tanto que somos conectados”, disse Ressa. No entanto, exaltou que tudo hoje é sobre dados e que o big data está mudando nosso mundo, mas as pessoas, em geral, não pensam muito sobre isso.
Destacou que os publicitários passaram a semana ouvindo sobre inteligência artificial (IA), das pessoas que desenvolvem a IA, porque essas empresas querem fazê-las acreditar que é quase impossível não usá-la. Reconheceu que também usa, no Rappler, com o aviso quando um resumo de uma notícia foi gerado por IA, por exemplo, por questão de transparência. Esse é um campo que tem sido desenvolvido há quase 70 anos (o termo foi cunhado em 1956), enfatizou, mas agora todos estão sendo pressionados a usar porque o dinheiro e o poder entraram em cena. “Ano passado, US$ 53 bilhões foram investidos em IA generativa e no seu uso”, pontuou.
O que elas têm em comum é que a distribuição do que jornalistas e publicitários fazem está conectado às redes sociais. Mentiras, quando ligadas a medo e ódio, se espalham seis vezes mais rapidamente (dado do Massachussets Institute of Technology, de 2018). “Vocês viram Elon Musk aqui. Com a IA entrando na rede social, tudo é comoditizado, notícias, seus conteúdos. E se as mentiras se propagam seis vezes mais rapidamente e as pessoas vivem em paranoia, tendem a ficar mais tempo online, porque o ponto é manter você navegando”, acrescentou.
Maria Ressa comentou que o Facebook usa machine learning para criar “um modelo de cada um de nós na plataforma”. O termo modelo, disse, poderia ser substituído por “clone” e as pessoas acham que não estão autorizando serem clonadas, mas estão e a massa de dados é usada para atingir “micro targets”. “Mas o que vocês usam para a publicidade e o marketing tem sido cooptado por países e líderes que usam essas informações, afirmou, fazendo referência à IA generativa e modelos de linguagem que não são baseados em fatos, mas nos dados ali colocados.
A primeira instância da IA com a qual a humanidade teve contato, pontuou, é que se trata de algo viciante. E o conceito é simples como o dos cassinos: “Dá oportunidade de ganhar, você tem respostas imprevisíveis e, então, a recompensa”.
E isso muda as pessoas, especialmente adolescentes, que têm enfrentado problemas de sono, de distúrbios alimentares. “Se você for uma menina de 13 anos, demorará três minutos para ser impactada por um conteúdo sexualizado, se continuar fazendo o scrolling”, afirmou. E ressaltou que não é o mesmo no TikTok ou no Snapchat, o que prova que é possível fazer melhor se a plataforma quiser.
E no nível acima das pessoas vêm os grupos que são movidos por emoções, “como bem sabem os publicitários”, destacou, o que segundo ela tem gerado tribalismos e as bolhas dos algoritmos trabalhando sob o conceito “friends of friends”.
“Em 2017, nas Filipinas, jornalistas mulheres foram dez vezes mais atacadas nas redes. A desinformação de gênero também piora nesse contexto”, alertou, lembrando que se alguém vê uma mentira um milhão de vezes, aquela mentira vira um fato. “Sem fatos, você não tem verdade e sem verdade você não constrói confiança”, ponderou.
Maria Ressa comentou, ainda, o fato de que 71% do mundo está, hoje, sob governos autoritários eleitos democraticamente e caminhando para o fascismo. E usou a si mesma para exemplificar os efeitos.
Em 2016, escreveu uma série de artigos para mostrar como o ecossistema de informação estava se tornando armado e como os algoritmos do Facebook impactam a democracia. A cofounder do Rappler fez uma conta falsa e descobriu que 26 contas falsas poderiam atingir mais de 3 milhões de outras.
E essa rede que tem sido usada para atacar jornalistas, ativistas e oponentes políticos. Mas não atacam com ideias ou argumentos e sim coisas grotescas. No seu caso, fazendo referência à sua aparência física, a como fala – ela exibiu algumas das postagens, comparando seu rosto ao de um macaco e outras que a chamavam de “saco escrotal” e mesmo vídeos usando deep fake, fingindo ser ela dizendo coisas que jamais disse.
Em 2021, 73% das mulheres jornalistas sofreram algum tipo de abuso online e 25% receberam ameaças de violência física e 20% sofreram violência real. “Violência online é violência offline”, alertou novamente Ressa.
Seu último tópico foi o impacto da manipulação sobre as eleições. Segundo ela, períodos próximos a eleições costumam ser de menos notícias e mais propaganda e “lama tóxica”.
Comentou que o Google começou a usar o search com IA generativa e isso significará menos tráfego aos veículos de notícias, que terão menos receita e isso, que atingirá também a indústria publicitária, irá, segundo ela levar a uma “enshittification” da internet, com a propagação de conteúdo de baixa qualidade (estudos já mostram que hoje 57% do conteúdo da internet é de baixa qualidade, afirmou).
Ela contou que o Rappler tem construído sistemas que evitam ser manipulado por algoritmos ou lucro das big techs. E isso requer coragem e algumas determinações: “Pare a vigilância por lucro; criem seus próprios sistemas de distribuição; pare o viés na programação, porque se você é mulher, morena, preta ou do sul global será mais marginalizada ainda no mundo real; e, por último, o jornalismo é um antídoto à tirania. Se o jornalismo morrer e ninguém for responsabilizado pelo poder, eles virão para cima de vocês em seguida”.
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