Segundo Abraham Lincoln, “a democracia é o governo do povo, pelo povo, para o povo”. As premissas básicas de um regime democrático são de que o Estado existe para servir a sociedade e de que o poder emana do povo. A existência de eleições livres, justas, frequentes e transparentes é o que garante que esse poder seja, de fato, exercido pelo povo, como deve ser em uma democracia representativa. O povo escolhe seus representantes que executarão o mandato popular nos parlamentos, ou seja, que cumprirão suas promessas.
Em teoria, estamos no caminho certo, mas, na prática, temos dois problemas estruturais que vêm distorcendo o sistema eleitoral brasileiro e o tornando perverso. No Brasil, uma das características mais básicas da nossa democracia representativa possui um vício inaceitável, imoral e, também, inconstitucional. Existe um subsídio eleitoral para que os atuais políticos sejam reeleitos e outro para que servidores públicos sejam candidatos. Esses subsídios não se aplicam para nenhuma outra categoria, classe ou, como parece, casta de brasileiros.
São privilégios que enfraquecem e distorcem a nossa democracia, já que atacam um princípio básico de igualdade perante a lei e de que todos os cidadãos merecem estar igualmente representados nos parlamentos.
O primeiro privilégio é o fundão eleitoral. A própria existência do fundão eleitoral já deveria ser questionada, por usar recursos dos pagadores de impostos para beneficiar apenas uma pequena parcela da população. Além disso, o fundão também é inconstitucional: segundo o artigo 17, parágrafo 3.° da Constituição, as únicas fontes de recursos públicos para os partidos deveriam ser o fundo partidário e o acesso “gratuito” (custa caro para os pagadores de impostos) ao rádio e à televisão (que em si já são questionáveis).
E tão grave quanto a existência do fundão e de seu bilionário valor – R$ 4,9 bilhões, maior que o orçamento de 99,8% dos municípios brasileiros – é o fato de que ele não é distribuído igualmente entre todos os candidatos. Candidatos recebem valores desproporcionais, sem qualquer critério de distribuição que não seja a vontade exclusiva dos caciques dos partidos. Com isso, existe um incentivo perverso para perpetuar os políticos já eleitos.
Em 2018, os fundos alocados em deputados em exercício foram mais que dez vezes superiores aos alocados em candidatos concorrendo pela primeira vez: os deputados em atividade receberam, em média, R$ 996 mil, já os novatos receberam R$ 93 mil. Os dados são de um paper do Instituto Millenium escrito por sua CEO e economista Marina Helena Santos e pelo advogado Sebastião Ventura, e desmentem a ideia de que o fundão democratiza as eleições: pelo contrário, ele reforça a posição de quem já está no poder.
O outro privilégio é o subsídio eleitoral para servidores públicos. A Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar 64/1990) trata das chamadas inelegibilidades relativas, que limitam a candidatura ou causam impedimento relativo a alguns cargos. Geralmente, trata-se de situações em que o candidato necessita se afastar do cargo ou da função pública que ocupa para que possa disputar determinado cargo eletivo. Os prazos de desincompatibilização não são os mesmos, variando de três a seis meses, e o seu não exercício pode impugnar o registro do candidato.
Conceitualmente, a previsão de desincompatibilização está correta, já que busca impedir que o servidor, no uso do cargo, função ou emprego público, utilize a administração pública em benefício da sua própria campanha. A regra da desincompatibilização serve para evitar o abuso de poder econômico ou político durante as campanhas políticas, o que pode comprometer o resultados das eleições. Ninguém quer ver um candidato utilizando a estrutura e recursos dos pagadores de impostos, que deveriam ser usados exclusivamente para servir à sociedade.
Em regra, o prazo para desincompatibilização de servidores efetivos ou comissionados é de três meses. Porém, nos casos em que há função de chefia, o afastamento deve ocorrer com antecedência de seis meses do pleito. De novo, a desincompatibilização serve um propósito meritório. O problema é que, durante todo o período em que estiver afastado, o servidor público segue recebendo seu salário normalmente. Nenhum outro grupo de brasileiros recebe esse mesmo privilégio eleitoral.
Enquanto qualquer pessoa comum precisa economizar e se programar para participar de uma eleição, não tendo qualquer proteção legal para manter sua renda durante a campanha eleitoral, os servidores públicos têm uma vantagem desproporcional e um incentivo perverso para serem candidatos sem correr qualquer risco e sem necessidade de economizarem ou de se programarem financeiramente. O Estado garante seus pagamentos integrais. Isso gera uma consequência não prevista: alguns servidores usam esse período para tirar “férias”, pois se afastam das suas atividades para serem candidatos, mas nem sequer fazem campanha.
Essa norma injusta, desigual e imoral vale para servidores públicos efetivos, dirigentes ou representantes de fundações públicas, autarquias, empresas estatais e instituições de ensino públicas. Só existe uma exceção: para servidores do Fisco, que devem se afastar sem remuneração por seis meses, desde que tenham a atribuição de fazer lançamentos, arrecadação ou fiscalização de tributos.
Recentemente, permitiram, inclusive, que promotores e procuradores se licenciassem com vencimentos integrais para se candidatarem. Entretanto, a candidatura eleitoral de juízes e promotores é vedada pela Constituição Federal. Esses grupos não podem exercer atividade político-partidária.
A perversidade e a distorção não terminam nas campanhas, elas apenas começam por lá. Eleitos com esses subsídios eleitorais, muitos servidores públicos assumem seus mandatos com o compromisso de aumentar salários, benefícios e privilégios das suas respectivas carreiras, grupos e corporações, sem qualquer regra de conflito de interesses. Isso viola os princípios da moralidade, igualdade e da eficiência.
Assim, os parlamentos, nas três esferas de governo, estão sendo dominados por corporações, e o interesse coletivo, do cidadão comum, acaba em segundo plano. Não é à toa que o Brasil é um dos países do mundo que mais gastam com funcionalismo público: gastamos 13% do PIB (Produto Interno Bruto), enquanto a União Europeia gasta, em média, 9,9% do PIB.
Todos os servidores de carreiras de Estado deveriam ter quarentena para disputar eleições. Além disso, nenhum servidor público deveria receber seus vencimentos quando escolhesse ser candidato e tivesse que se afastar do seu cargo ou função.
A candidatura é uma decisão de interesse pessoal; no máximo, de interesse partidário. Portanto, não há razão legítima para que esse projeto privado (pessoal ou partidário) seja subsidiado pelos pagadores de impostos. É uma distorção estrutural que viola o princípio básico da democracia, de que esse sistema é do povo, pelo povo, para o povo.
Nossa democracia está sendo transformada em um sistema dos servidores, pelos servidores e para os servidores. Se isso ocorrer, haverá uma grande inversão da origem e da legitimidade do poder. O poder deixará de ser emanado do povo e passará a ser emanado do Estado. Não podemos aceitar essas inversões. Precisamos acabar com essas distorções enquanto ainda existem parlamentares que não são servidores.
Fonte: Gazeta do Povo
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