Fonte:|terramagazine.terra.com.br|
Fernando Eichenberg
De Paris
No verão da Normandia de 1963, o francês Jean-Pierre Yvon, aos 11 anos de idade, saía às pressas dos bancos da escola, na cidade de Cherbourg, direto para o set de filmagens de "Os Guarda-Chuvas do Amor" (Les Parapluies de Cherbourg), filme dirigido por Jacques Demy e estrelado pela jovem atriz Catherine Deneuve, então com 20 anos. "Ficava fascinado ao ver Cherbourg se transformar de repente pela neve ou pela chuva, com a ajuda dos bombeiros, para dar o clima necessário à cena desejada por Demy, e também por ver personagens como Catherine Deneuve, ainda não tão conhecida, mas já uma estrela em ascensão", relembra Jean-Pierre, hoje aos 57 anos, o olhar faiscante de nostalgia.
Vencedor da Palma de Ouro do Festival Internacional de Cinema de Cannes de 1964 (que teve Fritz Lang como presidente do júri), o primeiro filme em cores de Jacques Demy e também o primeiro inteiramente cantado do cinema francês - com composições de Michel Legrand - se tornou uma obra cult. Sobre a experiência de Les Parapluies de Cherbourg, Catherine Deneuve disse, em 1988: "Descobri um sentimento novo e soube que não o esqueceria nunca. Havia algo de mágico com Jacques (Demy), com o papel, com esse filme. Algo me tocou verdadeiramente. Como uma harmonia repentina. Digamos que senti algo que, em relação a mim e ao cinema, me pareceu fundamental".
Recentemente, o escritor Luis Fernando Verissimo escreveu numa crônica: "Um dos cenários do filme era a loja de guarda-chuvas da mãe da Catherine Deneuve, e quem visitava Cherbourg depois de ver o filme invariavelmente pedia para conhecer a loja. Não só não existia a loja do filme como não havia nada parecido com uma indústria de guarda-chuvas em Cherbourg para aproveitar a propaganda grátis. Cherbourg se tornara famosa por ter o que não tinha".
Quem tirou os guarda-chuvas da ficção das telas para as intempéries do mundo real foi Jean-Pierre Yvon, aquele mesmo que, menino, se encantara com a magia das filmagens nas ruas da cidade. Jovem, ele renegou os estudos de administração para seguir a carreira de fotógrafo. Por 15 anos atuou como fotógrafo freelance, com base em Paris e muitas viagens pelo mundo. De volta à cidade natal, e já proprietário de uma loja de objetos exóticos e bijuterias, inaugurada em 1981 no n° 30 da rua des Portes, foi numa manhã, ironicamente sob o chuveiro, que lhe veio a idéia de criar os guarda-chuvas de Cherbourg. "Quando cheguei em Cherbourg, havia a imagem do filme, o mito, a lenda, mas não existia o produto. Por todo o lado onde viajava no mundo se falava no guarda-chuva do filme, mas não existia o guarda-chuva, havia o filme de Jacques Demy", conta. Seu primeiro guarda-chuva foi lançado em 1986, com produção terceirizada, e já com a marca registrada "Le Véritable Cherbourg" (o verdadeiro).
Mas, mais do que simplesmente lançar um produto, sua ambição foi a de criar uma grife de referência mundial. "Para citar dois exemplos, existe a marca Burberry para os impermeáveis, a Mont Blanc para canetas, mas para o guarda-chuva não havia essa referência", nota. Para alcançar o objetivo proposto e a perfeição almejada, em 1996 criou sua própria fábrica: "Ao longo dos anos, foi preciso melhorar a qualidade e decidi criar a manufatura aqui mesmo. Vendi o elegante sobrado que tinha em Cherbourg, comprei máquinas, empreguei sete pessoas e passei a fabricar guarda-chuvas, coisa que não sabia fazer e que, hoje posso dizer, é algo muito mas difícil do que se imagina", assegura.
Jean-Pierre Yvon não economiza meios para fazer um produto de exceção. Investe 10 mil euros por uma sessão de testes de um dia no túnel de vento do Instituto Aerotécnico de Saint-Cyr. Um dos modelos de seus hoje reputados guarda-chuvas resiste a um vento de face de até 140km/h. Na confecção, utiliza peças de titânio e carbono, tecido de microfibra e kevlar, madeiras nobres e anéis de prata maciça ou de ouro de até 24 carats, de acordo com o gosto do freguês.
Sua relação de clientes, para os quais fabrica guarda-chuvas personalizados, condiz com produto oferecido: do rei do Marrocos e estrelas como Gérard Depardieu, passando por marcas de luxo - Beaume & Mercier, Cartier, Van Cleef & Arpels, Hermès, Rolls Royce ou as champanhas Dom Pérignon, Ruinart e Roederer -, até o presidente francês Nicolas Sarkozy e a primeira-dama Carla Bruni-Sarkozy. "O presidente François Mitterrand tinha um dos meus guarda-chuvas, um preto. Jacques Chirac possui uns seis ou sete modelos diferentes. O Sarkozy tem um marrom, très haut de gamme, e Carla Bruni um de tecido que imita o couro", conta, orgulhoso.
Para as comemorações do 65° aniversário do desembarque da Normandia, na Segunda Guerra Mundial, no último 6 de junho, Jean-Pierre atendeu a uma solicitação especial do Grupo de Segurança da Presidência da República francês (GSPR): quatro exemplares de seus guarda-chuvas "semiblindados", para serem utilizados pelos seguranças dos presidentes Barack Obama (EUA) e Nicolas Sarkozy. "Elaborei um guarda-chuva mais sólido, cujo tecido resiste à golpes de faca, a um picador de gelo ou ao ácido. Esse modelo, feito para os vips internacionais, custa 6.500 euros. Para aperfeiçoá-lo, foram necessários dois anos de pesquisas e 60 mil euros de investimento".
Hoje, Jean-Pierre Yvon produz cerca de 12 mil guarda-chuvas por ano, de forma artesanal. "Cada um leva cerca de uma hora e meia para ser montado. Os que fiz para a Van Cleef & Arpels, como tinham mais detalhes, exigiam três horas de trabalho cada". O entusiasmado fabricante aprecia afirmar que não lançou um guarda-chuva, mas um "conceito". Ele abre um de seus produtos e, ao suave ruído do desabrochar do dossel, diz: "Ouve-se a qualidade".
Jean-Pierre Yvon não conheceu Jacques Demy, falecido em 1990, mas a viúva do diretor, a também cineasta Agnès Varda, a quem foi pedir permissão para fabricar seus guarda-chuvas. "Ela achou formidável, disse que ajudaria na imagem e na promoção do filme". Ao comercializar seus véritables guarda-chuvas de Cherbourg, ele não está vendendo uma inverdade, como escreveu Luis Fernando Verissimo: vende uma verdade que ainda não tinha se lembrado de acontecer.
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