No último ano, com as eleições para a presidência da república dos Estados Unidos, vimos muitos famosos posicionando-se publicamente a favor de Hillary Clinton, na música, no cinema, na televisão… Alguns foram mais ardorosos em suas campanhas (Katy Perry), outros só mostraram seu apoio na reta final (Beyoncé). Há os poucos que jamais soltaram uma palavrinha sobre o assunto, e foram criticados por isso (Taylor Swift).
Na moda, Marc Jacobs lançou camiseta de campanha de Hillary Clinton, Michael Kors colocou Rufus Wainwright para cantar em um desfile e apoiar a candidata, Ralph Lauren praticamente vestiu Clinton em todos os seus compromissos e a Vogue americana, pela primeira vez na história, posicionou-se politicamente ao apoiar a candidatura de Hillary. Daí o que era impensável para muitos aconteceu: Donald Trump venceu.
Prontamente, a pergunta que começou a repercutir, foi: como a moda vai se posicionar agora? Será que os estilistas vão querer vestir Melania Trump depois de uma relação tão carinhosa com Michelle Obama? Em sua grande maioria, os profissionais americanos tentaram se colocar de forma diplomática, nem animados demais, nem .... Foram poucos os que tentaram usar seu trabalho como forma de protesto, como fez a estilista francesa Sophie Theallet, que divulgou uma carta aberta pedindo para que todos os seus colegas de profissão não vestissem Melania. Marc Jacobs, por sua vez, disse que não tinha o menor interesse na primeira-dama, enquanto Tom Ford disse que preferia não vesti-la até porque ela não tem nada a ver com o estilo de sua marca. Houve também um debate em torno das revistas de moda: será que a Vogue americana, que tem uma longa história de capas com primeiras-damas americanas, vai estampar Melania em uma de suas edições (isso já aconteceu no passado, muitos anos antes da candidatura de Trump)?
Pois bem, passado um tempinho, Anna Wintour já disse que podemos esperar a primeira-dama nas páginas da publicação sim: “Temos um histórico de cobrir quem quer que seja a primeira-dama na Vogue, e não imagino porque seria diferente dessa vez”, disse a editora-chefe da publicação e editora artística da Condé Nast, uma das mais fervorosas eleitoras de Clinton. Karl Lagerfeld, que também apoiou Hillary Clinton em sua campanha, já até criou um look exclusivo de alta-costura para Melania usar em um compromisso oficial (mas vale lembrar que os dois têm um relacionamento de longa data, e já foram fotografados juntos em alguns desfiles da Chanel).
Melania também já apareceu vestindo Michael Kors. Comentando o assunto, Kors optou por ser diplomático: “A Sra. Trump é uma cliente de longa data de nossa loja em Nova York. Ela tem um afiado entendimento do que funciona melhor para ela e seu estilo de vida”, disse o estilista, que quis, de forma discreta, deixar claro que não a emprestou ou deu a roupa. Foi Melania que comprou o look.
Com tudo isso, nós nos perguntamos se é de se estranhar que a moda, quando mais precisa se colocar, parece omissa, e fomos conversar com Maria Claudia Bonadio, doutora em história, expert em história da moda, autora de livros sobre o assunto e professora da Universidade Federal de Juiz de Fora, sobre o passado desse meio.
Petiscos: O que você acha dessa discussão de estilistas de quem vai ou não vai vestir Melania Trump?
Maria Claudia Bonadio: Me parece que na história recente é uma questão que difere um tanto da ideia de que vestir a primeira-dama é um privilégio, uma vez que as ideias propagadas pelo presidente Trump são polêmicas e, em muitos casos se chocam com o que defendem os designers de moda e parte de sua clientela. Faz todo o sentido que alguns estilistas declarem publicamente que não gostariam de vesti-la, ao menos de forma “oficial”, pois não querem que suas marcas sejam associadas à ideias como xenofobia, racismo, homofobia ou sexismo.
P: Desde então, porém, vimos pouca movimentação da moda em termos de pronunciar-se politicamente, especialmente com as últimas medidas de Donald Trump. Isso é uma surpresa?
MCB: Alguns estilistas já se pronunciaram ao informar publicamente que não gostariam de associar seus nomes e marcas ao governo Trump. Marc Jacobs, que é gay assumido, disse que prefere concentrar suas energias ajudando aqueles que serão prejudicados pelo presidente americano. Em sua campanha, Trump garantiu que os direitos seriam mantidos, mas ao assumir o governo, uma de suas primeiras medidas foi apagar do site da Casa Branca o espaço dedicado aos direitos LGBT. De qualquer modo, tradicionalmente são raros os designers de moda que se posicionam de forma clara em termos políticos, possivelmente por receio de perder a clientela. Alguns estilistas que atuam nos Estados Unidos e são descendentes de imigrantes, ainda que de forma discreta, afirmaram que também não querem associar suas marcas ao governo Trump, tal como Phillip Lim e Derek Lam. Outro que deixou claro que não trabalharia para Melania foi Naeem Khann e foi coerente ao dizer que tem seu nome associado à Michelle Obama e que não seria certo, portanto, vestir a nova primeira-dama e declarou também não concordar com as propostas do novo governo. Sophie Theallet, é francesa mas disse que aceitar vestir a primeira-dama é uma forma de referendar as propostas do novo governo. Alguns estilistas tentam manter certa neutralidade, mas em minha opinião, quando um designer aceita vestir uma figura pública acontece uma troca de prestígio, então criar peças de roupa para Melania ou Ivanka pode sim afetar a forma como a clientela vê os estilistas, marcas e seus valores. Aqueles que declararam publicamente que se orgulhariam de vestir Melania, como Tommy Hilfiger (rei do estilo preppy) e Carolina Herrera, terão seus nomes associados às ideias do governo, mas talvez seja isso mesmo que sua clientela aprecie. Tommy Hilfiger ainda disse que seria um orgulho vesti-la, pois é linda e valorizaria a roupa de qualquer estilista, mas Melania não é um manequim de vitrine e nem toda sua beleza fará apagar o conservadorismo de seu marido. Portanto, não dá para tentar dissociar a roupa de quem veste, pois diferentes pessoas imputam as roupas com diferentes significados culturais.
P: Você pode nos contar um pouco sobre o relacionamento entre estilistas e grandes ditadores ou figuras controversas da política?
MCB: O primeiro caso é o famoso envolvimento de Coco Chanel com o oficial nazista, que inclusive já virou livro e é sempre motivo de especulação. Outro caso curioso é da Adidas e o ditador cubano Fidel Castro, que trocou o uniforme militar que usou por tantos anos pelos agasalhos esportivos. Há quem diga que o gosto pela marca se justificava porque a Adidas patrocinou até 2012 a equipe olímpica de Cuba, mas tendo a achar que Fidel também gostava dos agasalhos e sabia que fazia uma provocação. Voltando à Segunda Guerra, quando a Alemanha invadiu a França, Hitler tinha, entre seus objetivos transferir a capital da moda para Berlim e começou a impor uma série de sanções à alta-costura parisiense, alguns costureiros, como Marcel Rochas e Jacques Fath optaram por colaborar com o nazismo ao vestir as esposas dos oficiais e assim garantir seu mercado, enquanto outros como Elsa Schiaparelli fecharam suas lojas ou foram perseguidos por não aceitar as normativas impostas pelos nazistas. Um caso interessante, que aconteceu no Brasil diz respeito ao estilista gaúcho Rui Spohr. Ele havia sido convidado para fazer o vestido de noiva a ser exibido no encerramento do show da Rhodia na Fenit de 1964 (uma grande vitrine para os costureiros brasileiros) e estava criando um vestido inspirado nas roupas das prendas gaúchas. Aconteceu o golpe militar de 1964 e o diretor de publicidade da Rhodia dispensou o costureiro, pois não queria ser associado ao então presidente deposto João Goulart, que era gaúcho. No caso, era a direção de publicidade que evitava problemas com o novo governo.
P: Você acha que a moda se pronunciou o suficiente? Não acha que pode ser superficial demais eles discutirem apenas quem vai vestir a primeira-dama ou não?
MCB: Isso é bem curioso, pois na marcha das mulheres que ocorreu recentemente, por exemplo, grandes nomes da música pop e do cinema fizeram discursos, estiveram presentes, mas nenhuma estilista de moda conhecida subiu aos palcos. E aí, o que me parece é que todo aquele discurso dos estilistas como criadores/artistas se esvazia, pois ao contrário dos artistas eles se calam, tal qual estivessem mais preocupados em garantir uma certa neutralidade e por consequência seu espaço no mercado do que com os rumos da política. Para mim, nessa história toda, quem foi mais claro em suas opiniões foi Tom Ford, outro gay assumido que afirmou ter votado em Hilary e que não considera que Melania tenha algo a ver com a imagem da marca. Curiosamente é um estilista que vem também trabalhando como diretor de cinema – área em que os artistas tem se posicionado de forma muito mais clara contra o governo Trump e especialmente em relação às suas medidas anti-imigração.
P: Consegue se lembrar de alguma vez que a moda assumiu uma posição política clara de oposição?
MCB: A única pessoa que assumiu um papel de oposição claro ao regime em vigor foi a Zuzu Angel, que levou tão a sério que morreu por isso! Conseguiu fazer oposição inclusive com as roupas que criava, nas quais bordava pássaros presos em gaiolas, quepes de soldados e canhões, tudo num desenho infantil que dava leveza às roupas e mesmo assim era uma crítica pesada. Me parece que os estilistas, quando ousam fazer alguma crítica, a direcionam para os padrões de beleza, de corpo. Como aconteceu com o desfile da marca do Ermicida o , que levou todos os tipos de corpos para a passarela, mas que tem um diferencial, pois a crítica não acaba ali. O site da marca, Laboratório Fantasma, vende as peças nos tamanhos mostrados no desfile. No meu entender esse desfile também teve sim um caráter político, no sentido de incluir quem é excluído, não só da moda, mas socialmente.
Outro caso que tenho conhecimento de oposição mais direta foi novamente durante a Segunda Guerra, quando no período da Ocupação Nazista na França, Madame Grès, contrariando as normas dos nazistas, criava vestidos com muitas metragens de tecido (o que era proibido), e às vezes com as cores da bandeira francesa como forma de resistência, e aí recebia punições.
É preciso muita coragem e desapego a números para se posicionar politicamente na moda. Apoiar um candidato que tem maior simpatia do público durante as eleições é fácil e ótimo para sua imagem e suas vendas. O importante é o que vem depois, quando o jogo vira e você vê o impacto de todas essas mudanças no futuro do seu país e na vida de todo mundo. Aí faltam palavras, falta postura. Sobram, infelizmente, camisetas de slogan. Dessas já temos o suficiente. Vamos mais longe?
Fotos: The Independent, The New York Times, America South and North, Pinterest Madame Chanel.
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