Grandes grifes hasteiam a bandeira da responsabilidade social, do respeito, do comportamento ético e do compromisso com a verdade. Mascara-se, no entanto, uma realidade cruel e pungente: uma produção barata e degradante.
Se o assunto é a transformação da realidade social, a dissimulação é a tônica dentre os detentores do poder econômico. O discurso é o mesmo e já não comove: prega-se o respeito ao meio ambiente, à concorrência leal e às leis trabalhistas. A sustentabilidade do desenvolvimento sob os aspectos ambiental, econômico e humano tornou-se lugar-comum de uso proveitoso, sem o qual não se atinge a desejável respeitabilidade da opinião pública. São palavras ao vento com interesses econômicos acaçapados.
É assim na indústria da moda. Grandes grifes hasteiam a bandeira da responsabilidade social, do respeito, do comportamento ético e do compromisso com a verdade. Criam códigos de conduta que contemplam missões, valores e princípios dignos de um Estado Democrático de Direito e, com isso, vinculam sua imagem à probidade, ao decoro e aos direitos humanos. Contam com público fiel à marca e ao estilo de vida que lhe corresponde.
Mascara-se, no entanto, uma realidade cruel e pungente: uma produção barata e degradante. Pulveriza-se intensamente a cadeia produtiva: contrata-se e subcontrata-se, dissipando-se os riscos da atividade. Negocia-se a prestação dos serviços sob o rótulo de relações estritamente comerciais. Paga-se pouco, muito pouco: o limite necessário para garantir o lucro máximo.
Pagos por produção, os trabalhadores resgatados em março deste ano continuaram costurando mesmo durante a fiscalização. Eles produziam para as grifes Emme, Cori e Luigi Bertolli (Foto: Anali Dupré)
A consequência não é outra, senão uma tragédia social. Milhares de costureiros, brasileiros e imigrantes, homens e mulheres, socialmente vulneráveis, submetidos a condições de trabalho ofensivas à dignidade. Espremidas em um pequeno imóvel localizado na zona central da cidade de São Paulo, as famílias residem em habitações coletivas e trabalham diuturnamente em manifesta degradação, expostas a riscos iminentes de incêndio e eletrocussão.
À geração de riquezas econômicas não corresponde correlata inserção social da pessoa trabalhadora, função primária da labuta humana. Trata-se de trabalho escravo na cadeia das grifes de grande renome e indubitável solidez econômica. Uma escravidão estrutural, pautada na degradação humana. Uma escravidão perspicaz, cuja vítima desconhece seu algoz. Uma escravidão social pós-moderna, onde os grilhões não estão visíveis aos olhos da sociedade. Uma escravidão impune.
Não raro, os escravagistas pós-modernos, que ditam as regras de um mercado nefasto, saem ilesos nas ações judiciais que lhes são movidas
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Trabalho escravo contemporâneo
Não raro, os escravagistas pós-modernos, que ditam as regras de um mercado nefasto, saem ilesos nas ações judiciais que lhes são movidas. Mais das vezes, o Judiciário afasta a responsabilidade jurídica daqueles que contribuem diretamente para o ilícito, seja por desconhecer o conceito contemporâneo de trabalho escravo, seja por aceitar as escusas defensivas das grandes grifes, que possuem notória capacidade de mobilização político-jurídica em prol dos seus interesses e invariavelmente alegam desconhecimento do fato. Seja, ainda, por pura ideologia.
Foi o que ocorreu em recente decisão do TRT da 2ª Região (São Paulo/SP) que, em sede de mandado de segurança, utilizado como via de recorribilidade interlocutória, já prejulgou o caso posto e afastou a responsabilidade da grande grife. Os fundamentos não são novos: os trabalhadores resgatados possuíam “empresa regularmente constituída”; inexistência “de qualquer forma de intimidação visando restringir a liberdade de locomoção”; e, mais grave, nas condições a que estavam submetidas as vítimas, “vive grande parte da população brasileira”. Como se vê, a decisão mostra-se conservadora sob os aspectos jurídico e social.
Pagos por produção, os trabalhadores resgatados em março deste ano continuaram costurando mesmo durante a fiscalização. Eles produziam para as grifes Emme, Cori e Luigi Bertolli (Foto: Anali Dupré)
A primazia da realidade cedeu à roupagem do formalismo e ao tecnicismo da teoria geral dos contratos mercantis. Desconsiderou-se a robustez das provas colhidas na diligência promovida pelos órgãos públicos fiscalizadores, que não deixava margem a dúvidas quanto ao comando e logística traçados pela grife, beneficiária direta da mão de obra das vítimas que produziam exclusivamente para a marca.
Dignidade humana
Olvidou-se o emérito julgador que o bem jurídico tutelado pelo trabalho escravo se transmudou na sua acepção contemporânea. Atualmente, não mais se exige a presença de instrumentos restritivos da liberdade, como práticas usuais de outrora, mas condições aviltantes à dignidade da pessoa trabalhadora provenientes da disparidade socioeconômica entre vítima e escravocrata moderno. A dignidade humana passou a ser, portanto, o bem jurídico protegido pelo crime de redução à condição análoga à de escravo, podendo ser atingida – inclusive, e não apenas – pela restrição da liberdade de ir e vir.
O último fundamento
da decisão traz consigo um preconceito de classe |
O último fundamento da decisão talvez seja o mais preocupante, pois traz consigo um preconceito ínsito. Um preconceito de classe. Afastar a característica degradante pelo simples fato de que grande parte da população brasileira também vive em condições precárias, inseguras e compartilhando cômodos revela o pensamento excludente que pauta grande parte da elite brasileira. Trocando em miúdos, é dar aos pobres a pobreza; aos miseráveis, a miséria.
É mais aceitável absolver do que condenar. É mais fácil não enxergar o elo existente entre as regras impostas de cima para baixo e as condições precárias de trabalho. É mais confortável virar as costas para o necessário processo de aprimoramento contínuo de uma cadeia marcada pela escravidão pós-moderna.
É inegável que a tomadora final dos serviços prestados lá embaixo, em condições subumanas, se omitiu no seu dever social, jurídico e cívico de conhecer os métodos materiais e humanos utilizados para a confecção dos produtos que encomenda. Não se preocupou em aferir a real capacidade produtiva daqueles que lhe prestam serviços e não teve interesse, sequer, em verificar como seu produto foi fabricado. Beneficiou-se diretamente da força de trabalho de toda a cadeia produtiva, mas deliberadamente fechou os olhos para as condições da produção, pondo-se em condição de ignorância. Trata-se de uma cegueira absolutamente proposital em face daquilo que ocorre ao seu redor.
A situação exige reflexão. Demanda colaboração da sociedade civil organizada, dos órgãos públicos responsáveis pela luta contra a escravidão e, especialmente, do Judiciário. Impõe-se que os magistrados assumam um papel político proativo, tomando para si o dever de contribuir para a transformação da realidade social. É mister, em arremate, desvelar a omissão culposa da elite da moda e arrebentar os grilhões camuflados que acorrentam milhares de trabalhadores brasileiros.
* Tiago Muniz Cavalcanti é procurador do Trabalho em São Paulo e membro da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaet) do Ministério Público do Trabalho
http://reporterbrasil.org.br/2013/11/os-grilhoes-ocultos-da-elite-b...
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Trocando em miúdos, é dar aos pobres a pobreza; aos miseráveis, a miséria.
Eu particularmente posso confirmar tudo isto porque vi de perto a dura realidade deste povo,...Isto não é só no centro de são paulo não, em todo o interior de são paulo esta infestado de aproveitadores,..Norte e nordeste e impistiado desta pratica,..em fim é muita sujeira isto esta em todo brasil.
E ainda assim...reclamamos das importações...
Se o governo deixar de cobrar impostos da área têxtil...vamos ser competitivos como? A base da baixa produtividade e explorando mão de obra clandestina ?
Aliás a exploração da mão de obra e condições ruins de trabalho não é o mote daqueles que são contra a importação, postando posts e reportagens de como o povo é explorado em Bangladesh, Índia e China°? Qual a diferença?
É mais confortável virar as costas para o necessário processo de aprimoramento contínuo de uma cadeia marcada pela escravidão pós-moderna.
Eu diria que é mais fácil jogar a culpa nos outros. É assim desde Adão e Eva.
Usar a exploração de mão de obra asiática como forma de protestar contra importações é apontar os erros dos outros com o dedo sujo.
Se o governo definir uma política industrial definindo quais industrias são necessárias para o país e nessa política estiver inserido o setor têxtil, aí concordo em barreiras de proteção, isenção e tudo mais, pois haverá um planejamento de mercado, de aprimoramento tecnológico e formação séria de profissionais para o setor; uma busca de competitividade e produtividade para a participação no comercio exterior (O Brasil é um dos países mais protecionistas da economia aberta)
Agora fazer reservas de mercado para simplesmente deixar um setor com privilégios, nunca deu certo: as reservas de mercado de informática e de brinquedos que o diga.
Ou brigamos para o governo definir uma política industrial para o país, e mostramos que somos importantes como cadeia produtiva para sermos inseridos nela, ou sempre vamos chorar como criança mimada quando o filho do vizinho ganhar um presente melhor.
E sobre brigar com o governo para definir uma politica industrial para o país, deveria ser função da FIESP e da ABIT, ou essa instituição está preocupada apenas com a eleição para o futuro governador de SP?
Considerando a dignidade do sr. Tiago Cavalcanti, a situação realmente precisa ser vista de vários ângulos:
1. se esses imigrantes aceitam trabalhar aqui nessas condições, é porque em seus países a perspectiva e principalmente a esperança são ZERO; por carta/ rede social etc. os que estão aqui comunicam isso a seus amigos de lá; e da Argentina fogem para o Brasil;
2. após pagar esse" pedágio" - esse é a pior pressão, vergonhosa, criminosa - a esperança renasce e eles vêm em busca de futuro mais promissor do que teriam; MAS, se custa caro é porque o aliciador/ transportador/ coiote e outros apelidos precisa pagar para alguém do país (leia-se Brasil) por questões do alto risco de serem pegos; sim falo, de corrupção;
3. Se há tantos ilegais é porque algum órgão público não cumpre seu dever; talvez por isso é que continuam os preços altos desse "pedágio": interessa a alguém rigor nesse assunto?
4. Órgãos fiscalizadores atribuem responsabilidade às empresas que se utilizam dessa mão de obra, nunca em órgãos federais, estaduais e mesmo municipais; a iniciativa particular será sempre culpada; é como o sr. Abílio Diniz em recente reportagem comentou que o atual governo federal não gosta de empresas prósperas: elas sempre serão o bode expiatório para omissões do governo; é mais fácil;
5. De minha parte, prefiro...
5.1 incentivar associações tipo ABIT, ABRAVEST e tantas outras a desenvolver uma mão de obra para que seja qualificada, uma vez que faltam muitas costureiras no país; então é mais fácil importar pois a fiscalização sempre imputará culpa no empresário (claro há de todos os tipos);
5.2 alertar como um empresário que investiu em equipamentos, máquinas, pessoas, vai esperar de braços cruzados o governo enfrentar a situação dos altos impostos brasileiros? Uma camisa masculina, de algodão, estampada, de mangas compridas, colarinho pode chegar no Brasil por R$ 25,00, posto em São Paulo. Isso é metade do custo de uma costureira média, registrada;
5.3 conviver com essa situação temporariamente perversa ( o imigrante sai em busca da livre iniciativa após pagar "pedágio criminoso") do que continuar a pagar o Partido Comunista Chinês que paga ao operário US 1,00/ dia, às custas do trabalhador brasileiro.
Essas sugestões podem contribuir para a erradicação da mão de obra escrava no país antes que continuemos a incentivas exportadores estrangeiros a se aproveitarem de nossa omissão em pról do nosso povo.
É mister, em arremate, desvelar a omissão culposa da elite da moda e arrebentar os grilhões camuflados que acorrentam milhares de trabalhadores brasileiros.
A situação exige reflexão. Demanda colaboração da sociedade civil organizada, dos órgãos públicos responsáveis pela luta contra a escravidão.
Talvez meus netos ou bisnetos vão ver o fim deste sistema de conduta.
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