Está difícil ter acesso a uma leitura de alto nível sobre moda no Brasil. Há uma crise na produção de conteúdo de moda em nosso país, a qual é comentada por vários profissionais do setor. Os textos acessíveis de moda das nossas revistas especializadas são caracterizados por serem:
São poucos os jornalistas de moda que proporcionam no texto um conhecimento histórico sobre o produto / a empresa / o estilista, que inserem em um contexto de coleções anteriores e de estação (Bárbara Leão de Moura e Constanza Pascolato são as melhores exceções em uma Vogue Brasil) e que tem uma bagagem cultural ampliada (afinal, para falar de moda, é preciso ter visto muito filme, lido muito livro e estar por dentro das exposições de arte, conectar-se com zeitgeist em suma).
E pára aí. O conteúdo de moda tupiniquim não consegue avançar além dessa fórmula. Por exemplo, não há abertura para longas entrevistas com profissionais relevantes do mercado internacional. Simplesmente não há. Muito menos se questiona ou confronta a própria fórmula.
Para mim, comprar eventualmente revistas como Elle e Vogue (as quais deixei de assinar, e mesmo a Elle eu recebia uma assinatura de presente, nem de graça eu queria isso) é um mal necessário. Porque é preciso ver o que está lá, para balizar ou confirmar alguns interesses do lojista e da consumidora (coisa que alguns blogs de moda nosso, a gente goste ou não, fazem bem, em tempo real, diário, e a revista a cada mês).
Outra coisa, ecológica
Tem que ter isenção. Não consigo acreditar em uma coluna na Vogue cujo nome é o mesmíssimo nome da empresa/movimento da colunista que a escreve (que antes se chamava Instituto alguma coisa, e está sempre mudando para nomes mais abrangentes e comerciais). Não transmite imparcialidade. O leitor vê lá uma oportunidade de auto-promoção, de auto-publicidade do próprio recurso financeiro da colunista. Podia ser a mesma pessoa escrevendo (que não conheço, mas me parece ser uma pessoa verdadeiramente engajada na causa ambiental/artesanal), porém com outro nome a coluna. E somente quem acompanha ia perceber que há muitas coincidências/sincronicidades sobre estilistas relacionados a colunista e que tem seu trabalho em destaque na tal coluna da revista.
Bom, e tem mais. A coluna está atrasada ao enfatizar o valor ecológico de produtos de moda. Sugiro que, antes de prosseguir, o leitor clique neste exemplo de texto da Vogue Brasil, que seleciona produtos ecológicos:
O assunto ecológico é adequado para o Brasil de anos atrás. A ideia de falar sobre produtos ecológicos em um Brasil que enfrenta crise econômica é fora de propósito (a não ser para uma coluna auto-publicitária, de um movimento auto-publicitário). Nestes anos de recessão econômica que nos batem à porta da realidade, o foco da moda sustentável no Brasil não deve ser o ecológico, mas sim os sistemas de moda para inovação social, isto é, precisamos fazer girar a economia em nível de comunidades, de forma perene e via design.
Outro ponto é que o argumento eco vem perdendo sua força de comunicação com o consumidor brasileiro, overloaded de greenwashing. Lemos a Vogue todo mês, há oito anos, e esse diálogo com a moda ecológica é adequado para o Brasil de três anos atrás (mais precisamente de 2011 e de 2009). Nós estamos vivendo um outro momento na discussão sobre moda sustentável, em que a ideia deprodutos reciclados, recicláveis (Vogue, que produto que não é reciclável? qualquer produto pode se proclamar reciclável, Melissa e Havaianas se dizem recicláveis; o que falta são sistemas de coleta e reciclagem para tais produtos), verdes (princípios do green design de 1970 – mais de 40 anos atrás, Vogue!) e eco-alguma coisa não são competitivos neste momento econômico – esses produtos refletem uma discussão antiga e beneficiam os friends, stakeholders diversos, do movimento eco-alguma coisa da coluna eco da revista. (Mas ainda assim é válido, dentre os amigo-stakeholders de Vogue, é melhor destacar o belo trabalho de uma Flávia Aranha que o trabalho escravo de uma Schutz – me fala uma edição que os Birman, Anderson, Mayte, Johanna, Alexandre, não aparecem na revista com a face mais impávida e nenhum vínculo de suas imagens pessoais com a responsabilidade por vidas humanas em condições análogas às de escravidão).
Novamente: as discussões mais “na moda” da moda dos produtos sustentáveis envolvem novos sistemas de moda, redução de consumo, valorização de aspectos culturais, sociais e territoriais (traduzindo: o lance do valor ecológico por si só não está na moda; mostrar produtos que substituem a matéria-prima convencional por materiais ecológicos ou artesanais é uma discussão de 40 anos atrás). Principalmente o foco é: sistemas de moda para inovação social.
A revista Vogue precisa atualizar seu discurso, porque ela é um veículo importante pra difundir as novidades da moda; mas está errando ao selecionar produtos meramente ecológicos: deveriam ser produtos que promovam a economia criativa, com sistemas de design e de tecnologia (por exemplo, tantas startups de moda de foco em negócios sociais que estão surgindo em SP, MG e RJ; tantos projetos em universidades que promovem a redução da desigualdade social e/ou que empodera uma comunidade pelo vetor da moda).
Mas aí o pessoal que escreve uma coluna dessas precisa ler alguma coisa acadêmica antes de escrever de forma panfletária ou no flow do sistema de jornalismo brasileiro de moda, mais uma coluna “wish-list” de produtos com valores (eco) que não são o foco da moda sustentável nestes anos de recessão econômica, e que apenas reiteram a dinâmica do velho sistema pautado no valor do Novo (que o Marx, que o Lipovestky falam). Fala-se sobre novos produtos ecológicos, que não mudam nenhum sistema, apenas se consolidam em uma dinâmica e gosto de consumo que já existe: os eco-consumidores.
Crítica construtiva, beleza?
No mais, outros detalhes absurdos do texto do “ECO-link” supracitado, como “look navy ser ecofriendly”, não vamos comentar… Vamos perguntar se alguém é bobo (pra não dizer idiota!) e acredita em tanta embalagem, em tanta foto, e em tanta descrição forçando a amizade? Vamos melhorar Vogue… Agora com 40 anos de revista que resolveu trazer o discurso do green design que tem sua idade… E em uma coluna cujo nome faz publicidade do movimento/empresa da colunista… Ética passa longe, conhecimento passa longe…
Falar de produtos ecológicos, no contexto de moda sustentável, está fora de moda para nova conjuntura econômica do Brasil, pois a massa está interessada no social/cultural e não estritamente no eco. Uma crítica maior, com embasamento científico, vai vir daqui uns meses na forma de um paper, fazendo análise de discurso da revista. Por hora, só uma cutucada para as coisas melhorarem.
Sugestão para a próxima mudança de nome do movimento/empresa/coluna: “Sócio-Cultural-alguma coisa grande com abrangência de Brasil”, deixa o eco ser intrínseco no atributo de valor do produto e não um diferencial MUITO MENOS uma publicidade explícita da própria empresa/movimento/instituto. Simplesmente não confiamos na abordagem, nas escolhas e nos vínculos. Fica suspeito, tinha que ter um pouco mais de isenção, imparcialidade e principalmente tinha que acompanhar as discussões atuais sobre moda sustentável no mundo e para a nova realidade do Brasil.
Finalmente, dizer que a coluna “eco-alguma coisa” da revista apenas reitera o discurso, sistema e abordagem dominantes da própria revista, que são pautados em valores de consumo renovado a cada edição/estação, pautados no paradigma do Novo. Não se confronta o sistema, apenas o alimenta agora com a novidade de produtos ecológicos (ora com a desejada pegada boho, ora vai transitar no vintage, ora na joalheria despojada, etc.). O “eco” não é uma forma de confrontar o sistema convencional, mas de alimentar o consumismo verde (green consumerism, coisa que alguns teóricos do projeto sustentável já falaram há quase duas décadas, a exemplo do mais popular e midiático deles, o italiano Manzini). Coluna eco não, consumismo verde, isso sim. É disso que a Vogue está falando e induzindo, por meio do discurso do “look navy ser ecofriendly” (que baboaseira, francamente!).
O que acontece é que a informação de moda, para ter força (coisa que não tem pelo mérito do conteúdo), vem com uma personagem-autoridade do assunto do qual trata. Na Vogue Brasil, já tinha a de beleza, agora tem a personagem de lifestyle (fraquíssima), a personagem de moda mesmo (mas gostaria tanto que uma Bárbara Leão de Moura fosse melhor aproveitada, é sem dúvida uma mulher inteligente que podia escrever textos ainda mais profundos sobre moda na revista) e aposto, vão criar agora a personagem ecológica, em que o assunto é estritamente o consumismo verde, mas cria-se uma identidade forte de autoridade em outro assuntos (inclusive moda ética que, não, não é aprofundado, é mais um rótulo para a eco-personagem). Jornalismo das Spice Girls. Não consigo acreditar no jornalismo amiguxo das Spice Girls.
- E como que o nosso jornalismo de moda pode ser melhorado?
Tem que mudar o direcionamento e procurar educar o leitor, precisa ter um contexto e sair da superficialidade dos fatos. De um lado, a revista deve dar abertura ao texto profundo, de outro, o jornalista tem que ser versado em história da moda e ter bagagem cultural. Tem que entrevistar várias fontes, apresentar mais vozes diferentes sobre um assunto. Tem que viajar pro exterior, seja pra ver um desfile, sentir o espírito de um cidade, seja pra entrevistar uma autoridade do assunto e conhecer frente-a-frente o que está falando. E sobretudo: tem que acompanhar as discussões científicas sobre moda, pelo menos das universidades dos Estados Unidos, Reino Unido, Itália e China (pois é, China, e acrescentaria ainda alguns artigos de processos e materiais inovadores de pesquisadores da Turquia e Leste Europeu). Se não, o jornalista vai continuar acreditando no que a empresa têxtil está falando, ou no que o sindicato, a confecção, o presidente da associação xy estão falando.
- O que a gente quer? O que a gente espera de uma revista de moda?
Jornalismo com abordagem isenta (POR FAVOR: JORNALISMO COM ISENÇÃO), sem personalidades-autoridades, sem jornalista-blogger, conteúdo de moda com contexto histórico, pautas atuais, pautas analisando o sistema (não necessariamente se posicionando contra a prerrogativa do Novo, da essência da própria Moda, mas refletindo a respeito, afinal é desleal induzir o leitor a ser um alienado fútil), pautas sobre o mercado de moda (até quando isso vai ficar só no site de uma Abit ou de uma Abravest?), entrevistas longas e profundas com profissionais do setor (e não entrevistas ocas com celebridades), menos glamour, mais pé no chão.
Semana passada, recebi de uma amiga de Nova York duas publicações de moda excelentes, que se contrapõem ao nosso jornalismo de moda tupiniquim (seu conteúdo, tamanho e abordagem) e evidenciam a carência que temos por publicações nacionais que pensam a moda além dos muros da universidade e seus respectivos artigos científicos.
São textos longos, aprofundados, em que se entrevista várias fontes, em que se tem um cuidado com design gráfico, em que o foco é o conteúdo relevante e não a publicidade indireta ou o styling. Tem um tamanho A3, muito bem diagramado. Dentre os vários méritos do jornal: uma excelente reportagem no QG da Zara e a seleção de sete assuntos relevantes para a conjuntura da moda, isto é, para o sistema da moda. Veja bem: diferente do nosso jornalismo brasileiro de moda, o foco aqui não são produtos e estilistas e novidades da estação, mas sim o pensamento sobre os sistemas de moda, os rumos da moda em termos de mercado/negócio e de design/projeto.
Nesta edição, sete temas são tratados, com um prisma de várias fontes sobre os assuntos, tratados como perguntas a serem respondidas:
Já no segundo caso, pensei se tratar de uma revista de artigos científicos, como a Fashion Theory, mas não. Neste “journal” em formato de revista, editado pela Parsons, há artigos de PhDs (a tão querida Kate Fletcher, por exemplo) e de pesquisadores científicos (mas sem usar a linguagem científica, que é difícil para as massas). Há também estudos de caso mostrando novos designers e artistas cujo trabalho reflete novas abordagens de moda (saindo dos binômios fast/slow, high/low, eco/convencional, etc., que é o meramente visível para muitos dos nossos jornalistas aqui, brasileiros, que colocam as coisas em duas categorias axiológicas pra tentar entender as coisas de maneira fácil, quando as coisas na verdade são complexas e muitas vezes indissociáveis). Por fim, há entrevistas objetivas com essas pessoas que pensam e fazem a moda diferentemente. Quando, nesta revista, o foco é a imagem, há páginas dedicadas unicamente a permitir a imagem, isto é, a imagem não compete com o espaço do texto: a diagramação permite a harmonia e profundidade de ambos.
Esta edição tem como tema central Sistemas Alternativos de Moda. Os tópicos são interessantíssimos, do crescimento exponencial de “bibliotecas de roupas” em cidades do interior da Suécia a um serviço de remoção de logos em camisetas.
E é isso aí. Não sou jornalista, mas consumo textos de moda e essa é minha opinião. Não dá pra aceitar ser enganado pelo status quo da informação de moda no Brasil. Essas revistas de moda no Brasil estão tratando a gente como verdadeiros bananas, inclusive quando inserem uma coluna “eco” no contexto do consumismo desprovido de contexto.
http://modaetica.com.br/critica-sobre-a-comunicacao-e-novos-sistema...
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Veja bem, não se está exibindo mais nenhuma “mulher real”, “gordinha gostosa”, mas questionando por que a indústria da moda ignora esse mercado de tamanhos especiais (e ok, não é que ela ignora completamente, e é aí que reside a resposta: o quanto é rentável, o quão é desejável, etc.).
Não dá pra aceitar ser enganado pelo status quo da informação de moda no Brasil.
E é isso aí. Não sou jornalista, mas consumo textos de moda e essa é minha opinião.
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