Em um ano completamente atípico, o São Paulo Fashion Week teve sua primeira edição completamente digital. Coincidentemente, a eleição dos EUA, uma das mais emblemáticas dos últimos anos e que mais refletiria na política do nosso país, ocorria na mesma semana. Pouco tempo depois, as eleições municipais no Brasil que, apesar do avanço da ultra-direita a nível mundial, teve recorde de candidaturas de pessoas transsexuais e travestis.
Assim como em suas edições anteriores, manifestações políticas não faltaram no SPFW, e não poderiam, em 2020. Inclusive, essas manifestações adquiriram novos formatos com a possibilidade de execução de vídeos que, inegavelmente, aumentaram exponencialmente a capacidade de contar histórias e gerar reflexões, por parte das marcas que optaram pela criação dos fashion films.
Nesse contexto de incertezas geradas pela pandemia, caos político e o avanço de políticas fascistas a nível mundial, com certo destaque para o nosso país, a representação do Brasil e sua identidade, sempre exprimida nas coleções apresentadas no São Paulo Fashion Week, adquire novos contornos.
Seja por algum saudosismo, memória afetiva ou necessidade de subversão, algumas marcas resgataram signos, simbologias e memórias tipicamente brasileiras como forma de reflexão e crítica sobre o momento atual em que vivemos.
Foi o caso da Misci, marca que trabalha a identidade brasileira em suas coleções já há algum tempo e estreou nas passarelas do São Paulo Fashion Week esse ano. Airon Martin, diretor criativo da marca, conta que esse trabalho da identidade brasileira no design é imprescindível já que, historicamente, existe uma dificuldade de apontar referências estéticas e imagéticas de uma identidade brasileira da moda e do design a nível nacional. Assim como citou Célio, Airon corrobora que esse trabalho de construção de uma estética nacional no design tem sido feito intensamente pelas novas marcas autorais e independentes do cenário nacional.
Intitulado “Brasil Impúbere”, o vídeo de apresentação da coleção tem roteiro de Erika Moreira e direção criativa de Airon Martins. Logo no início, vemos a bandeira do Brasil inserida em algumas cenas e nos óculos utilizados pela modelo, Emilly Nunes, mas não de uma forma “nacionalista” como nos acostumamos a ver nos últimos anos, mas sim acompanhada da narração: “Se alguém me dissesse que o mundo acabaria hoje, eu não duvidaria” em um cenário de ruínas. Sobre essa associação, da bandeira nacional ao cenário de destruição, Airon explica: “Quando você coloca uma bandeira do Brasil num cenário destruído pelo homem, é para associar que o patriota que não conhece o país destruiu o Brasil, e quem sobreviveu é a mulher indígena”.
Para ele, a ideia não é exatamente subverter ou alterar os símbolos nacionais. Airon pontua que essa não-identificação e desapropriação dos símbolos nacionais, tal qual a bandeira faz parte da agenda conservadora e direitista “patriota” enquanto estratégia política. Para o designer, “A única estratégia possível é que a gente associe as bandeiras nacionais como elas são e não tentar criar símbolos alternativos”.
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O vídeo também é gravado em uma das regiões costeiras mais ameaçadas pelas mudanças climáticas, em que a maré mais avança e causa desastres ambientais, o que é representado no cenário de deslizamentos e ruínas de casas e construções. A região também é composta por diversas barragens no percurso do Rio, compondo um cenário de ameaça da crise climática com a ameaça humana predatória sobre a natureza.
“Com o avanço da ultradireita e depois a pandemia, acho que qualquer ser humano deve ter se questionar se seria o início do fim ou não, tendo em vista tudo que temos visto no mundo.”
Além disso, o vídeo ainda resgata algumas memórias afetivas muito pessoais do designer, mas do imaginário coletivo, como o filtro de barro e os crochês, típicos de “casa de vó”. Mais uma vez, situado no cenário em que se encontram, esses signos clássicos da cultura brasileira causam uma sensação mista, ao mesmo tempo em que ativam nossa memória, eles não se encontram em uma situação que nos traz muita afetividade em meio aos destroços das construções. É, de alguma forma, um resgate de uma memória nacional e afetiva – de tempos mais simples – para nos fazer refletir sobre o caos dos tempos atuais. Afinal, o designer pontua que entende isso como o real objetivo do seu trabalho, criar imagens que geram reflexões.
Outro caso importante de ser pontuado, é o da LED, de Célio Dias. A marca – e o designer – que sempre fala a favor de pautas LGBTQIA+, antirracismo e políticas justas, com um claro posicionamento em uma situação política tão polarizada, chamou sua coleção de “Brasileira”, que, para ele diz respeito ao design brasileiro, aos novos criadores brasileiros, e à driblar as dificuldades desse contexto, tanto político, como de um ano extremamente atípico.
A moda e as passarelas já foram locação de diversos protestos, programados ou não. Em um novo formato a forma de manifestar-se também muda. Para Célio, designer da LED: “Em uma passarela é mais fácil a gente trazer um protesto, em um vídeo, fiquei me perguntando como trazer isso: e é uma coleção inteira de protestos que estão subentendidos nas peças”
Quando pensamos no que o símbolo nacional da bandeira se tornou nos últimos anos, frequentemente associado a grupos de ultradireita e ao bolsonarismo em contraposição com os posicionamentos da LED, é fácil de entender a necessidade de subversão e reapropriação da bandeira nacional por parte do designer. A bandeira é um símbolo nacional, e com essas associações, estamos perdendo as simbologias do verde, amarelo e do azul de uma das bandeiras mais bonitas que conhecemos, conta o estilista. “Foi uma retomada, de retomar os nossos símbolos, porque eles são nossos” continua.
Uma das peças mais iconográficas da coleção é uma camiseta com a estampa da bandeira do Brasil e um rosto triste. Sobre essa arte, Célio conta que ficou se questionou sobre como representar a bandeira nacional nessa coleção até chegar na ideia que estampou as peças da coleção: “Vou negativar a bandeira e deixá-la como um papel em branco, porque de fato é sobre mudar o rumo das coisas”.
Mais do que nunca, entendemos que a moda tem seu papel político e social, manifestações como as que vimos nas passarelas nesse mês são de grande importância para criar mensagens e elevar a roupa a novos patamares socioeconômicos.
No entanto, empreender e fazer moda no Brasil não é fácil: é isso que a maioria dos designers independentes irão te contar, ainda mais no panorama econômico e sanitário do país. Politizar o fazer moda é, portanto, sobre driblar essas dificuldades e perdurar, apesar de todos os obstáculos: “É aquela velha história de ser brasileiro e não desistir nunca, isso talvez seja a tradução de Brasileira, da LED” finaliza Célio.
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https://ffw.uol.com.br/noticias/moda/ponto-de-vista-designers-reint...
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A moda como classe artística sempre obedece e se aliena ao discurso corrente, onde quer sempre ser vista como "atualizada" e "dona de verdade estética atual".
Pensar e discutir politicamente, creio q não seja o objetivo, e sim a busca de aplausos de um público narcisista.
Com características efêmeras, pede que aguardemos o passar do tempo, para que uma novidade com características altruístas ou ares de arrogância elitista ou ainda seja lá o q se chame de "moderno", ocupe o discurso dos artistas de moda que sempre irão valorizar a forma e não o conteúdo.
Nada de novo na moda de passarela.
Continuamos caminhando para q cada vez mais os mercados sejam independentes dos "gurus da estética".
Aleixo, presado colega, suas palavras, de forma quase poética, estabeleceu o limite real entre SÍMBOLOS e modismo.
Nossos síbolos pátrios não são paradigmas que se baseiam em ocasiões ou momentos espetaculares, mas são a base do nosso pragmatismo cívico!
Aos poucos esclarecidos temos que deixar que façam o que querem, afinal hoje a essência da palavra liberdade é o "posso fazer o que quero..." Ledo engano! Para os que que quebram a base da sociedade sob o discurso de quebrarem barreiras, restará o abismo que os engolirá!
Hilario Aleixo Munhoz disse:
A moda como classe artística sempre obedece e se aliena ao discurso corrente, onde quer sempre ser vista como "atualizada" e "dona de verdade estética atual".
Pensar e discutir politicamente, creio q não seja o objetivo, e sim a busca de aplausos de um público narcisista.
Com características efêmeras, pede que aguardemos o passar do tempo, para que uma novidade com características altruístas ou ares de arrogância elitista ou ainda seja lá o q se chame de "moderno", ocupe o discurso dos artistas de moda que sempre irão valorizar a forma e não o conteúdo.
Nada de novo na moda de passarela.
Continuamos caminhando para q cada vez mais os mercados sejam independentes dos "gurus da estética".
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