Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

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O sonho do livre comércio acabou?

 

 

Era uma vez um mundo que negociava a abertura dos mercados. Ele ficou lá atrás, na década passada, e deu lugar à desglobalização

 

O cidadão brasileiro que gosta de desfrutar o que há de bom e barato na indústria mundial, de eletrônicos a vinhos, passando por roupas e calçados, talvez não tenha percebido, mas uma guerra se aproxima. Há séculos, ocorre um embate entre os interessados em abrir mercados – por meio do livre-comércio de bens e serviços entre países – e os interessados em fechá-los. Nas últimas décadas, os advogados do livre-comércio pareciam em vantagem, suficiente até para que os protecionistas temessem o que chamavam de excessos da globalização.

Veio a crise, e os dois lados acreditavam que, assim que ela fosse embora, retomariam a discussão do ponto em que haviam parado. Estavam errados. A crise, somada ao impressionante nível de agressividade e competência da China e de outros países asiáticos na conquista de mercados, mudou as perspectivas para o restante do século XXI. O mundo deverá se aproximar, nos próximos anos, não de um paraíso global das compras, mas sim de um campo minado de batalhas comerciais intermináveis. Bem-vindo à era da desglobalização.

O discurso do governo brasileiro tem sido em defesa da abertura comercial. "É urgente que se combata o protecionismo", escreveu a presidente Dilma Rousseff, em artigo publicado nesta semana no diário britânico Financial Times. Dias antes, no entanto, o governo mostrou sua disposição para dar alguns tiros barulhentos nessa guerra. Elevou em 30 pontos porcentuais o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) cobrado de carros com menos de 65% de conteúdo nacional. Foi uma medida claramente contrária às regras internacionais de comércio e incômoda para seus alvos – China e Coreia do Sul. O Brasil não está isolado nesse tipo de movimento, embora outros países costumem atuar de modo mais sutil.

 

Abrir o mercado e adotar as políticas certas é uma poderosa fórmula de desenvolvimento

 

 

Ao avaliar o G20, o grupo das 20 maiores economias do mundo, que inclui o Brasil, a Organização Mundial do Comércio (OMC) identificou, entre outubro e abril passado, 122 medidas protecionistas, número bem maior que as 54 registradas no período anterior. Entre as vítimas dessas medidas, que passaram a sofrer com o encarecimento ou a ausência dos produtos importados que procuram, estão os fãs de pêssego em calda no Mercosul, os apreciadores de uísque e cachaça na Austrália e os que procuraram bistecas de porco e equipamento para uso de energia solar na Índia. Nos Estados Unidos, uma nova taxação atinge desde maio os profissionais não americanos que vendem bens e serviços ao governo de Barack Obama. Medidas desse tipo tornaram mais difíceis, em 2011, as compras e vendas internacionais de carros, aviões, barcos, refrigeradores, aquecedores, laticínios e utensílios variados de aço, ferro e plástico. Em um relatório publicado no primeiro semestre, a OMC concluiu que o alto desemprego nos países desenvolvidos fortalecerá os que defendem o fechamento dos mercados e o isolamento de produtos e trabalhadores estrangeiros. "Essas questões não estão sendo discutidas de forma adequada. Uma onda de protecionismo é inevitável", diz Jean-Pierre Lehmann, doutor em economia pela Universidade de Oxford, professor da escola de negócios suíça IMD e uma das principais vozes em defesa do livre-comércio global. "A questão é quanto essa onda vai durar e quão profunda ela será. A desglobalização se torna um cenário assustador e cada vez mais plausível." Se estivermos mesmo nesse caminho, quais as consequências para o mundo?

 

o há uma relação direta e simples entre abertura comercial e desenvolvimento, como se um fosse consequência natural do outro. Mas existe uma forte coincidência entre os dois fenômenos. Um privilegiado grupo de nações se destaca tanto entre as mais economicamente competitivas como entre as mais abertas aos negócios, nos rankings do Fórum Econômico Mundial (sobre competitividade) e da fundação educacional americana Heritage (sobre liberdade econômica, que inclui liberdade de comércio exterior). Economias relevantes como Cingapura, Suíça e Austrália lideram os dois rankings, acompanhadas de perto por EUA, Canadá e Chile. No grupo intermediário nos dois rankings, figuram México, África do Sul, Turquia e Brasil, este último um pouco pior em abertura do que em competitividade. Em pior situação, também nos dois rankings, vêm Paraguai, Argentina e Venezuela.

 

A coincidência só não é completa por causa de nações asiáticas como Índia, Indonésia e China. Elas são relativamente fechadas, mas mostram forte ritmo de crescimento, porque administram duramente a velocidade de abertura e as áreas em que farão negócios com o exterior. Até o momento, parecem bem-sucedidas. O economista sul-coreano Ha-Joon Chang, professor na Universidade de Cambridge, elogia-os e alerta: nações ricas querem que os países em desenvolvimento abram seus mercados rapidamente demais e, assim, deixem de usar a "escada" da abertura controlada, que permitiu a ascensão de potências como Reino Unido e França no passado. Ele não crê que o protecionismo seja um problema grave. "A crise pode fazer com que alguns países em desenvolvimento repensem suas estratégias de longo prazo, o que pode elevar o protecionismo", diz. "Se um mercado mais ou menos aberto é bom ou ruim, isso depende do país, do momento e do setor." Com ou sem asiáticos na equação, porém, é fácil entender por que o comércio internacional benfeito é uma poderosa fórmula de desenvolvimento.

 

Para evitar o recurso a medidas protecionistas, o Brasil precisará atuar em diversas frentes

Países que expõem seus empreendedores ao mercado global obrigam-se a melhorar suas referências em educação, treinamento de pessoal, administração, circulação de novas ideias de negócios, facilidade para criar e fechar empresas, cobrança de impostos, gestão pública e infraestrutura – em suma, a lista quase completa das tarefas com que o Brasil vem sendo negligente há décadas. Uma das maiores especialistas do país em comércio exterior, a economista Lia Valls Pereira, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas, diz que a abertura comercial, para resultar em crescimento, precisa ser acompanhada de várias medidas. Basicamente, reformas que aumentem a competitividade da economia. Ela considera mais evidente o efeito contrário: países que permanecem fechados ou decidem restringir o acesso a suas economias tendem a apresentar pior desempenho na luta para elevar o padrão de vida de sua população. Dilma Rousseff sabe disso e repetiu a mensagem contra economias fechadas em seu discurso de abertura da Assembleia-Geral das Nações Unidas, na quarta-feira. "O protecionismo e todas as formas de manipulação comercial devem ser combatidos, pois conferem maior competitividade de maneira espúria e fraudulenta", disse. O aumento do imposto sobre veículos importados adotado por seu próprio governo é sintomaticamente um exemplo escandaloso do tipo de distorção a que ela se referiu. Como em todo anúncio de medida desse tipo, o discurso é sobre garantir empregos e estimular o investimento em tecnologia e inovação locais. O argumentoo se sustenta, já que as fabricantes de veículos abriram em 2011, até agosto, 26.800 empregos – um belo número, mas não de uma escala diferente dos 22.700 do setor calçadista e muito menos que os 329 mil das indústrias de transformação. O Brasil tem bom potencial no design de roupas e calçados, mas esses segmentos não foram protegidos pelo aumento do IPI, diz Mauro Zilbovicius, professor da Escola Politécnica da USP e especialista em indústria automobilística. A arma usada pelo Brasil nessa batalha também não foi das mais sofisticadas ou típicas da guerra atual.

 

Nas batalhas comerciais, hoje os países usam um arsenal variado, que inclui subsídios diretos a empresas selecionadas; barreiras que atendem a supostos padrões ambientais mais elevados; e restrições às compras que os governos podem fazer. A arma mais difícil de lidar, no momento, é o câmbio. Países com políticas comerciais agressivas, como China, Coreia do Sul, Indonésia e Vietnã, desfrutam, em graus variados, os benefícios de ter uma moeda desvalorizada em comparação com as dos parceiros comerciais do Ocidente. Como resultado, seus produtos parecem muito baratos. No caso da China, a estimativa é de ganho entre 25% e 40% diante do concorrente brasileiro, apenas por causa da moeda em que cada um é produzido. Países desenvolvidos como Suíça e Japão têm reagido e controlado a flutuação de suas moedas, a fim de impedir que seus produtos encareçam demais. Dilma também se manifestou sobre esse tema na ONU: "É preciso impor controles à guerra cambial", afirmou. O discurso tem sentido, mas seria difícil limitar a soberania dos países sobre suas moedas.

Além disso, o segredo da China não está só no câmbio. O advogado Durval de Noronha Júnior, árbitro de disputas internacionais na OMC, lembra que os chineses mudaram 9 mil leis e se prepararam durante 15 anos para disputar o mercado global com a ferocidade que demonstram hoje.

 

Para evitar o recurso contínuo a medidas protecionistas, o Brasil precisará atuar em diversas frentes. O economista Roberto Giannetti, da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, defende a ideia de que o governo trate simultaneamente do ambiente de negócios ruim e do real valorizado – problema que preocupa mesmo após a desvalorização da moeda brasileira registrada nos últimos dias, que recolocou o dólar no patamar acima de R$ 1,80. "A China tem uma obsessão, de criar 25 milhões de empregos por ano. O governo brasileiro tem de ser igualmente obsessivo em atacar os problemas de competitividade", diz Giannetti. A verdade é que um dia a crise vai terminar, mas a China não irá embora. Nessa guerra, não será com medidas paliativas e restritivas que o Brasil aumentará suas chances de vencer.

 

 

FONTE: 

Autor(es): MARCOS CORONATO, KEILA CÂNDIDO E DANIELLA CORNACHIONE
Época - 26/09/2011

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