Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

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Interposição Fraudulenta de Terceiros na Importação - considerações sobre a criação da norma

escrito por Ângela Sartori (*)

Por ocasião do projeto que redundou na edição da Lei nº 9.613/98 – que dispõe sobre os crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores – seus autores entenderam por bem, prevenir a generalização, de modo a evitar o previsível excesso por parte das autoridades.

A definição do delito de interposição fraudulenta o qual, no dizer do legislador, naquele momento, corresponde: aquele em que alguém presta-se a intermediar negócio com recursos ou coisas que sabe ser produto de crime antecedente. A esse delito foi atribuída uma qualificação de crime equivalente à receptação, como se vê do item 23 da mencionada Exposição de Motivos;

23. O projeto, desta forma, mantém sob a égide do artigo 180 do Código Penal, que define o crime de receptação, as condutas que tenham por objeto a aquisição, o recebimento ou a ocultação, em proveito próprio ou alheio, de “coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro de boa-fé, a adquira, receba ou oculte”. Fica, portanto, sob o comando desse dispositivo a grande variedade de ilícitos parasitários de crimes contra o patrimônio”.

Por isso, inicialmente a “interposição fraudulenta” corresponderia a um crime conexo, posto que praticado na intenção de ocultar coisa ou dinheiro que tem como origem um dos crimes elencados no artigo 1º da Lei nº 9.613/98 (crime antecedente): tráfico de drogas; terrorismo; contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; de extorsão mediante seqüestro; contra a administração pública (corrupção); contra o sistema financeiro nacional; praticado por organização criminosa.

Assim, aquele que importa ou exporta bens com valores não correspondentes aos verdadeiros pode estar praticando, nos termos dessa lei, uma “interposição fraudulenta” (art.1º, § 1º, III). A condição, todavia, é de que essa interposta pessoa, saiba que os recursos financeiros empregados nas operações tem origem em um dos crimes tipificados no artigo 1º da Lei de regência. Vale aduzir que nessa conduta o dolo essencial – a intenção criminal – há de restar comprovada.

Desnecessário lembrar que face o princípio da tipificação cerrada, a que se subsume o direito penal, inclusive penal-tributário e penal-aduaneiro, não poderia nenhuma autoridade fiscal afastar-se do rígido trilho legal traçado pelo legislador. O afastamento da norma se qualificaria, a princípio, como abuso de autoridade e desvio de finalidade de norma.

Outrossim, há de reconhecer-se que essa tipologia infracional (a interposição fraudulenta, por conduta tipificada no inciso III do art.1º da Lei), exige um nexo de causalidade entre a interposta pessoa e o crime antecedente. Sem essa vinculação, que há de ser dolosa, não há crime algum.

Não escapou a argúcia dos autores da Lei nº 9.613/98 que instrumentos legais com esse poder de coação deveriam ser contidos, pois que se prestam, na contrapartida das boas intenções do legislador, a desvios de conduta, a procedimentos espúrios, a abuso de autoridade e outras situações conhecidas pelo administrado. Por isso os autores da Exposição de Motivos nº 692/MJ, previnem contra a generalização, nos seguintes termos:

"24. Sem esse critério de interpretação (referindo-se à equivalência entre a receptação e a interposição fraudulenta, vide item 23 acima transcrito), o projeto estaria massificando a criminalização para abranger uma infinidade de crimes como antecedentes do tipo de lavagem ou de ocultação. Assim, o autor do furto de pequeno valor estaria realizando um dos tipos previstos no projeto se ocultasse o valor ou o convertesse em outro bem, como a compra de um relógio, por exemplo.”

Embora efetuada essa declaração de princípios o legislador não obteve seu intento, pelo menos a julgar pela série de autos de infrações lavrados pela RFB do Brasil sob o pressuposto da prática de interposição fraudulenta, nela incluindo quaisquer suspeitas sobre “subfaturamento” e outros.

As Instruções Normativas SRF nº 225 e 228, ambas de 2002, como que aferrolham o importador numa sistemática asfixiante e burocrática à simples suspeição de ter sido cometido uma “interposição fraudulenta”. Por isso que quaisquer operações realizadas através de intermediários, como Tradings, corre o risco de ser truncada por ações fiscais. Basta um equívoco documental, um erro procedimental, para que diligentes servidores “retenham” a mercadoria, vislumbrando um suposto crime de interposição fraudulenta.

Começa-se o processo pela apreensão da mercadoria (o uso da palavra retenção é puro eufemismo) que se mantém até que se dê fim ao procedimento especial atualmente previsto na INSRF 1.169/2011. Vale dizer, por cúmulo, que o apenado aguardará a iniciativa, a diligência e a conhecida presteza do Fisco na solução do problema o qual, provavelmente, redundará na pena de perdimento da mercadoria.

Deve-se dizer, que o Fisco se sente autorizado a intuir, na prática de um ato excusável ou de simples infração administrativa, um conluio, uma fraude ou uma simulação. Embora subliminarmente, o princípio de que toda infração é objetiva, o que explica porque primeiro se conclui pela conduta fraudulenta para depois apurar-se seu eventual cometimento. Com isso, e confirmando o prenúncio do legislador, massifica-se, generaliza-se e criminalizam-se condutas que, sob qualquer ótica, não configuram crime de interposição fraudulenta.

Trata-se, a bem ver, de um desvio de finalidade de norma, claramente estampado no parágrafo 1º do artigo 1º da IN SRF 228/02, que acrescentou à finalidade originária (combate ao crime de lavagem) um adendo para incluir também “os responsáveis por infração à legislação em vigor”. Leia-se o texto:

"Art. 1º As empresas que revelarem indícios de incompatibilidade entre os volumes transacionados no comércio exterior e a capacidade econômica e financeira evidenciada ficarão sujeitas a procedimento especial de fiscalização, nos termos desta Instrução Normativa. § 1º O procedimento especial a que se refere o caput visa a identificar e coibir a ação fraudulenta de interpostas pessoas em operações de comércio exterior, como meio de dificultar a verificação da origem dos recursos aplicados, ou dos responsáveis por infração à legislação em vigor. (grifei)

Ora, ao assim proceder, estendeu a tipificação do crime de interposição fraudulenta originário – do tipo cerrado – para uma tipificação aberta de tal sorte que, a partir dessa normativa, toda e qualquer infração à legislação em vigor – vale dizer, tudo o que nela se contém – pode vir a constituir-se, aos olhos do Fisco, em crime passível de justificar o perdimento de bens. Esse poder – o poder de confiscar bens do administrado.

Além de distorcer o conceito do que seja uma importação fraudulenta, incluiu no escopo da norma ilícitos puramente fiscais suscetíveis de serem equacionados e combatidos pela via da própria legislação ordinária. Assim, por exemplo, o subfaturamento ou sub-avaliação da base de cálculo, a inexatidão documental e outras tantas figuras que caracterizam infrações aduaneiras, acabam caindo na vala comum da interposição fraudulenta, o que significa uma notória generalização e conseqüente criminalização dessas situações. Exatamente o que legislador, a julgar pela Exposição de Motivos 692/96 pretendia evitar.

Embora isso, não é menos certo que o Executivo atribuiu-se a função judicante (rito do perdimento instrumentalizado pelo Decreto-Lei nº 1.455/76) e a competência condenatória – a imposição da sanção de perdimento – à força – mais uma vez – da Medida Provisória nº 66 (artigos 59 a 60) que redundou na edição da Lei nº 10.637/04, que mandou acrescer a interposição fraudulenta no corpo do artigo 23. É possível, que o Poder Legislativo não tenha conectado esse dispositivo com o ditame da Lei nº 9.613/98, estabelecendo assim um conflito de competências.

Mesmo assim, admitindo-se a legalidade da norma, é de se ver que sua tipificação restringe-se a penalizar com o perdimento apenas a interposição fraudulenta da qual resulte o emprego de recursos obtidos ilicitamente por efeitos dos crimes antecedentes dispostos na Lei º 6.913/98. Ou, na hipótese contrária, não autoriza a aplicação dessa sanção a situações que possam configurar “outras infrações à legislação em vigor”.

Veja o texto legal, artigo 23 do Decreto – Lei 37/66:

Art.23 – Consideram-se dano ao erário as infrações relativas às mercadorias: I - ........... V – Estrangeiras ou nacionais, na importação ou na exportação na hipótese de ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiros; § 1º - O dano ao erário decorrente das infrações previstas no caput deste artigo será punido com a pena de perdimento das mercadorias. § 2º - Presume-se interposição fraudulenta na operação de comércio exterior a não comprovação da origem, disponibilidade e transferência dos recursos empregados.”

Com efeito, a legislação acima confirma, assim, que a interposição fraudulenta, como figura delituosa, só se define e tipifica relativamente a uma intermediação comercial que vise ocultar, em artifício doloso, o real comprador ou real vendedor, ou ainda o responsável pela operação, sempre que os recursos empregados tenham origem ilícita oriunda de um crime antecedente.

Descabe, nos termos de direito, aplicar a pena de perdimento, ou reter mercadorias a pretexto de que quaisquer outras hipotéticas infrações à legislação aduaneira pudessem configurar a referida interposição fraudulenta. Assim, uma suspeita de subfaturamento, por exemplo, não se sujeitaria a esse rito procedimental extremo, devendo solucionar-se pelo Acordo de Valoração Aduaneira.

O que vemos atualmente é que por questões como, por exemplo, a empresa importadora saber de antemão quem será o comprador de sua mercadoria importada, gera, com este simples fato, uma suspeita da prática de interposição fraudulenta e com isto a possibilidade de representação para fins penais, muitas vezes uma surpresa para o importador e comprador, que será acusado de real importador.

Tal interpretação infelizmente está longe da intenção da norma quando assim foi criada, conforme acima explicado, devendo assim o contribuinte importador se defender desta interpretação equivocada do fisco.

(*) Angela Sartori, advogada na área tributária e aduaneira, sócia da Sartori Consultores Associados, ex conselheira do CARF, membro da Comissão do Contencioso Administrativo Tributário da OAB/SP, especialista em Direito Tributário pela PUC – SP, extensão em Direito Internacional pela FGV – GVLAW, autora de diversos livros e artigos na área tributária e aduaneira.

 
 

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