Por Ricardo Rezende Figueira
O trabalho involuntário em empresas agropecuárias ou outras unidades de produção, fruto da
coerção, sob o pretexto da dívida, tem sido identificado por muitos defensores dos direitos
humanos, sindicalistas, jornalistas, funcionários do Estado e pesquisadores como trabalho escravo.
Em geral a pessoa é aliciada diretamente ou através de terceiros no local onde mora ou no local
onde busca trabalho e é levada para outro município ou estado. Uma vez transportada até o local do
trabalho, ela é informada de que só poderá sair após pagar o abono recebido no ato do recrutamento,
os gastos efetuados no transcurso da viagem com transporte, hospedagem e alimentação. A dívida
pode aumentar se a alimentação e os instrumentos de trabalho são adquiridos em uma cantina na
própria fazenda.
A eficiência do sistema de coerção depende de diversos fatores, tais como a responsabilidade moral
sentida pelos trabalhadores frente à dívida e a presença de homens armados. A vulnerabilidade das
pessoas aumenta pela distância entre a fazenda e o local de recrutamento, pois não apenas estão
longe de suas cidades, mas de uma rede de solidariedade que poderia ser acionada, composta por
seus parentes, amigos e conhecidos.
A relação de trabalho pode vir acompanhada por um conjunto de práticas que são tipificadas
juridicamente como crime – manutenção de pessoas em cárcere privado, violência física, como a
tortura e lesões corporais, assassinato e danos ambientais - e violações às leis trabalhistas – ausência
de assinatura de Carteira de Trabalho e Previdência Social, recolhimento dos direitos
previdenciários, pagamento do salário e das férias, condições inadequadas de habitação, transporte,
alimentação e segurança.
A categoria trabalho escravo por dívida, como não é exatamente a mesma escravidão que havia na
antiguidade romana e grega, ou a da África e das Américas até o século XIX, suscita dúvidas para
alguns pesquisadores, por isso, a categoria vem acrescida, algumas vezes, de complementação
(semi, branca, contemporânea, por dívida ou análoga). Também têm sido utilizadas outras
expressões para designar o mesmo fenômeno: trabalho forçado, uma categoria mais ampla que
engloba diversas modalidades de trabalhos involuntários, inclusive o escravo. No caso Ocidental, o
trabalho obrigatório, sob pretexto de uma dívida, tem se dado não apenas nos países chamados do
terceiro mundo, mas em países ricos. Em alguns países da África e da Ásia, a escravidão aparece
também por motivos étnicos ou religiosos.
Entre as características do escravo está a sujeição a um senhor que o trata como se fosse
mercadoria. Nesse caso, a pessoa é obrigada a servir sob coação e a totalidade de seu trabalho é
apropriada. Ser mercadoria é uma característica codificada no Direito Romano que considera o
escravo uma “coisa”; um direito que permite a compra e a venda de pessoas - o escravo.
Em José de S. Martins, com diversos artigos sobre o tema, encontramos que: ”Sob o rótulo de
escravidão por dívida, há uma razoável variedade de situações envolvendo os peões das grandes
fazendas, sobretudo na região Amazônica”. No passado a escravidão, continua o sociólogo, era
definida por costume e lei e o “o cativo era mercadoria”. Hoje o trabalhador pode ou não se tornar
mercadoria, “depende de circunstâncias”. Na nova escravidão há uma temporalidade de “curta
duração”, como nas derrubadas de mata nas fazendas da Amazônia, ou de longa duração como a
dos índios Tukuna, do Amazonas, mantidos em escravidão por mais de 20 anos por dois
fazendeiros. O escravo, explica Martins “não é senhor de sim mesmo”. Depende de outro e é
“também sua propriedade”.
O relação se caracteriza pelas más condições de vida, salários insuficientes e, não é raro, diversas
coerções sejam físicas ou morais.
O escravo, lembrando tese de Meillassoux, é sempre alguém que vem de fora, é o essencialmente
estrangeiro. A escravidão contemporânea distingue-se das anteriores porque em geral é de curta
duração, ilegal, não é fruto de uma guerra e nem sempre é motivada por um seqüestro. Mesmo
havendo divergências, há estudiosos que consideram escravidão como a melhor categoria para
expressar essa realidade material de trabalho coercitivo contemporâneo por dívida, como K. Bales,
José de S. Martins e nós do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo.
De fato, essa modalidade de trabalho coincide, em quatro aspectos, com as escravidões
consideradas clássicas e parâmetros para classificar outras:
1) a pessoa é tratada como se fosse mercadoria;
2) há, mesmo que temporariamente, uma totalidade de poder exercida sobre ela;
3) a vítima é alguém de fora, um estrangeiro;
4) e, finalmente, os donos de escravos temporários não têm criadouros de escravos. As pessoas, de
fato, hoje também não se reproduzem no local do trabalho, mas no local mesmo do aliciamento, do
seqüestro ou da guerra.
A definição da categoria trabalho escravo (por dívida ou por outra razão) não é apenas fruto de uma
discussão a partir de categorias abstratas. Ela é fruto de motivações sociais e políticas, conseguindo
aos poucos se impor pelas pressões, principalmente de órgãos de Direitos Humanos, como a
Comissão Pastoral da Terra (CPT), e sindicais, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores
Rurais (CONTAG).
Conforme Neide Esterci, a melhor forma de classificar essa relação de trabalho é de fato ir além de
uma discussão “a partir de definições já estabelecidas nas convenções internacionais expressas em
códigos legais nacionais ou elaboradas nos trabalhos de especialistas”. Para a antropóloga é
necessário intensificar a pesquisa e o diálogo porque há muitas “questões em torno do tema”. Uma
delas é “a das classificações, dos nomes” que se realizam segundo “o contexto, os critérios e as
posições dos diversos atores envolvidos ou que se pronunciam em cada caso”.
“Determinadas relações de exploração são de tal modo ultrajantes que escravidão passou
a denunciar a desigualdade no limite da desumanização; espécie de metáfora do
inaceitável, expressão de um sentimento de indignação que, afortunadamente, sob esta
forma afeta segmentos mais amplos do que os obviamente envolvidos na luta pelos
direitos”.
“Esse, talvez, é o sentido novo de escravidão, ainda não capturado nas leis de modo
eficaz, mas utilizado por representantes de segmentos os mais diferentes da sociedade
quando expostos a determinadas circunstâncias” (Neide Esterci).
O presidente Fernando Henrique Cardoso utilizou a categoria trabalho escravo para falar a respeito
da situação vivida por certos trabalhadores durante seu governo, e apresentou como única diferença
entre a forma atual de escravidão e a do século 19, o fato de que o escravo do passado sabia quem
era seu senhor e o atual não.
O presidente Luís Inácio Lula da Silva e seus ministros utilizam regularmente a categoria “trabalho
escravo” e cada vez se torna mais comum a adoção da categoria escravidão para descrever o que se
passa com muitas pessoas..
Assim, por força de construção social, manifestada nas pressões de grupos específicos e no seu uso
cada vez mais freqüente pelo conjunto das organizações oficiais e não oficiais, uma modalidade de
trabalho forçado tem sido reconhecida como não apenas parecida com a escrava, mas de fato como
escrava. Os que empregam a categoria consideram que sua utilização não obscurece ou confunde o
seu significado, mas o torna mais visível.
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