Os olhos do padre Alberto Gomes brilham quando fala da sua obra. Peças de fazenda preta de lã, tecidos como sedas, shantungs, rendas e brocados há muito que deixaram de ter segredos para este homem de fé. Num espaço da igreja da Portela de Sacavém, em Loures, dirige um ateliê de vestes religiosas, onde desenha modelos originais, depois executados pelas três costureiras a quem dá emprego. E acredita que o negócio "tem potencial para crescer".
Apesar do corte e das cores usadas em paramentos e sotainas obedecerem a regras rígidas, sempre que a oportunidade espreita, o pároco de 47 anos cria peças únicas, adequadas a cada momento e celebração. "Nesse caso, coloco a minha etiqueta, Ars Sacra, a versão em latim de Arte Sacra", conta. Clientes não faltam para este negócio próprio. "Tenho desde seminaristas a um mais antigo, com 80 anos, pois a dignidade das vestes dura até sempre".
NOVO MERCADO
A dar os primeiros passos em Portugal, a indústria da moda religiosa floresce em Itália, onde estilistas, comerciantes e distribuidores apostam neste mercado. Zona de fronteira entre Roma e o Vaticano, a via dei Cestari distingue-se pelas lojas especializadas em trajes para padres e freiras, que exportam para os quatro cantos do Mundo. Mais a norte, a pequena cidade de Vicenza saltou para o roteiro internacional por todos anos organizar a maior feira de artigos do género e receber visitantes de todas as nacionalidades, portugueses incluídos. É para lá que o padre Alberto viaja em breve: "É muito interessante. Há materiais, tecidos, tudo o que é necessário para a construção das vestes da Igreja e encontram-se sempre novas tendências".
A ideia de montar loja e marca próprias surgiu para se distinguir do pronto-a-vestir. Inspirado por um bisavô coleccionador de arte e dono de uma loja de alta costura francesa, o padre Alberto cresceu a apreciar "o que é belo". Criar peças "de qualidade" foi apenas mais um passo na caminhada da sua vida.
"Quando fui ordenado senti a necessidade de que o paramento, veste usada na celebração e na missa, fosse único, feito para mim. E nas paróquias onde fui estando senti também esse apelo, de que os paramentos correspondessem às características da Igreja e do local onde estavam a ser usados. Embora tendo algumas peças feitas, queremos adequar, naquilo que pode ser criado, ao gosto da pessoa e ao local onde vai ser utilizado, quer nos materiais, quer na decoração", frisa.
"Ainda há pouco tempo fiz uns paramentos cujos desenhos foram escolhidos pelo designer da paróquia. Esse modelo é exclusivo e mais ninguém o pode usar". Do que não prescinde é da qualidade: "Uso sempre materiais nobres. Aqui as batinas custam cerca de 400 euros e os paramentos não excedem os 600. Mas compensa, pois estas vestes são feitas para durar".
ÍCONE DE MODA
Foi com a chegada do Papa Bento XVI que a moda religiosa ganhou novo fôlego. Eleito pela revista ‘Esquire' como o homem que melhor escolhe os acessórios, o papa alemão recuperou peças tradicionais, como capas de arminho, chapéus e rendas, algumas em desuso desde o Concílio de Trento, no séc. XVI. Os sapatos vermelhos, que se diziam ser da marca Prada e afinal são de um artesão local, e as camisolas negras, da firma Armani, adensaram o mistério sobre o Sumo Pontífice.
A polémica foi tal que o cardeal Guido Marino, responsável pelas celebrações litúrgicas do Vaticano, viu-se obrigado a justificar que as escolhas de Bento XVI não eram sinal de vaidade, mas desejo de assinalar "a continuidade com as celebrações que marcaram a história da Igreja".
PARA TODOS OS PREÇOS
O estilo faz doutrina. A vender trajes religiosos desde 1937, na Casa Nun'Álvares, no Porto, também se nota um ressurgimento da veste eclesiástica. "Aumentaram os pedidos de batinas e os paramentos tendem a ser mais elaborados", explica Eugénia Teixeira, na loja há cerca de 40 anos.
"Os jovens que se formam padres usam túnicas com mais rendas e entremeios. Nessa veste usamos um poliéster, tecido leve, que não se amarrota. Para casulas e estolas há quem prefira damascos e estampados no próprio tecido". Os preços variam com o tecido e o desenho usado. "Os paramentos vão dos 125 aos 400 euros. Nas batinas rondam os 225 euros e só se fazem por marcação".
Mas o brio da confecção própria é ameaçada pela "oferta das lojas internacionais, com peças mais ricas que podem ultrapassar os quatro mil euros, no caso de um paramento bordado a ouro e prata", explica um responsável da italiana Barbiconi. Ali, um hábito de freira ronda os 500 a 700 euros, as batinas oscilam entre mil a dois mil euros, consoante o material, e vendem-se para todo o Mundo.
Mais do que tendência de moda, o ressurgimento das vestes religiosas pretende "devolver estatuto à Igreja", explica Moisés Espírito Santo, sociólogo. "Isso é mais marcante no clero masculino, em que é visto como uma afirmação do prestígio social. Até ao século XIX, muitas vezes essa era a única maneira de distinguir pessoas do comum e as ordens tinham bens, cobravam impostos sobre as aldeias, estavam próximas do poder político e eram prestigiadas", explica.
"Da parte das freiras, como se dedicam ao ensino e a acções sociais, o recato das vestes é mais eficaz do que a ostentação das suas insígnias".
No início do século XX, com a mudança de mentalidade, muitas ordens foram perseguidas e "hoje vê-se de tudo. Quem use a veste talar (trajes compridos), os mais fundamentalistas, e quem a queira evitar", diz o sociólogo.
SINAIS DOS TEMPOS
Adaptadas à época e ao papel da Igreja, as vestes religiosas evoluíram com os tempos. Responsável pela imagem moderna da Igreja, o Concílio Vaticano II, que durou de 1961 a 1965, liberalizou usos e costumes. Os padres abandonaram a batina para se aproximarem da população. Nas freiras, o hábito deixou de ser obrigatório, ficando à escolha de cada congregação.
"Muitos eram inspirados nas vestes regionais da época", explica a irmã Diana Barbosa, 71 anos. As Doroteias, consagradas à educação e juventude, adaptaram o hábito às tarefas. Ao azul inicial, inspirado nas gentes de Nápoles onde a congregação nasceu em 1834, sucedeu o preto, que nos anos 1970, por ser considerado austero para "um ambiente onde se recebiam crianças", foi trocado pelo cinzento. O vestido subiu para meio da perna.
Curiosamente, é fora da Europa que renasce o hábito comprido. Viajada, Diana Barbosa fica maravilhada sempre que em Roma vê religiosos africanos e asiáticos com vestes de todas as cores. "Lá reagem bem a coisas estapafúrdias. Há capulanas, turbantes, hábitos verdes e cor-de-vinho, e são todos católicos. É muito interessante. Mas o hábito", diz, "não é condição sine qua non para se ser religioso. O grande sinal é o testemunho de vida".
Nascida no calor de Cabo Verde, numa família abastada, Diana foi estudar Matemática em Coimbra para escapar à vigilância dos familiares de Lisboa. A vida no lar de Doroteias marcou-lhe o destino. Nunca prescindiu do contacto com o exterior mas também nunca tirou o hábito. Usa vestido curto, cinzento, e véu. "Pelas minhas funções, fui professora e agora arquivista, não tive necessidade de mudar. Sinto-me bem com o hábito simplificado, nunca sofri uma agressão, mas isso aconteceu a algumas irmãs que optaram por trabalhar em meios onde o hábito não era bem recebido. As próprias situações foram determinantes, pois a vida faz-se fora também".
Integrada numa ordem aberta, as Carmelitas Missionárias, a irmã Lúcia, 41 anos, usa roupa secular. "Vestimos roupa igual a qualquer pessoa, até calças. E compramos onde queremos. Antigamente, os hábitos eram feitos nos conventos, agora compramos ou mandamos fazer. Não podemos é mostrar luxos", conta entre gargalhadas.
Freiras de clausura, as Carmelitas de Beja são das poucas que ainda mantém o hábito tradicional. Seguindo os mandamentos anteriores ao despontar das lojas, quando era às religiosas que cabia toda a confecção de vestes religiosas, ainda são as próprias que costuram, recorrendo ao corte "inspirado pela Virgem".
"O nosso hábito é castanho porque somos uma ordem contemplativa e de penitência. Pode ser em fazenda de lã, terilene ou borel", explica a irmã Inês, 77 anos. "E é feito para durar muito. Usamos o hábito comprido, um escapulário negro e uma correia feita em couro, para cingir o nosso corpo como símbolo da castidade. Actualmente, o modelo é menos sofisticado e já não tem pregueados. Temos também a capa branca, que usamos para a eucaristia, actos de comunidade e em dias de festas, que simboliza a pureza da Virgem". O calçado tem de ser preto, "sandálias no Verão e sapatos fechados no Inverno".
GUARDIÃO DA SÉ DE LISBOA
Na Sé de Lisboa, o cónego Luís Pereira da Silva é guardião de paramentos que datam do século XVII. "E não temos mais antigos porque foram roubados nas invasões francesas", conta. Apesar de usar roupa secular no dia-a-dia, aceita as indicações da Santa Sé para que se recuperem as vestes eclesiásticas nos actos oficiais e é com gosto que explica o simbolismo de cores e tradições.
"No caso das vestes litúrgicas, usadas na celebração, comum a todos é a alva, túnica que vai do pescoço até aos pés. Por ser branca remete para a santidade de Deus, para o Sagrado. A estola é a veste comprida, estreita, que se põe no pescoço, e tem o sentido do poder e, julgo, de Cristo. Depois endossa-se a casula, veste exterior, sinal da plenitude e do sacerdócio".
Já as cores variam com os momentos litúrgicos, explica. "O branco é usado nos períodos festivos, Natal, Páscoa e festas de Nossa Senhora, como sinal de esplendor, luz e exultação. O roxo é uma cor penitencial, usada no Advento e Quaresma e também nos funerais. O vermelho é o símbolo da realeza, à maneira de Cristo, por isso usado na Semana Santa, no domingo de Pentecostes e nas festas dos mártires. Verde é a cor do tempo comum, quando a Igreja não medita nenhum mistério particular de Cristo mas sim a palavra e acções de Cristo".
SINAIS DOS TEMPOS
Atento ao evoluir da imagem da Igreja, o cónego Luís Pereira da Silva salienta que a orientação do Papa Bento XVI tem um sentido: "Hoje, de facto, há um recrudescer da veste eclesiástica e as normas da Santa Sé apontam nesse sentido. Isso vem chamar a atenção para a dignidade que se deve ter. Estas vestes também são sinais dos tempos. Até ao século XIX há um esplendor notório. O século XX foi perpassado por um certo desejo de simplicidade e sobriedade, ao nível artístico e da própria sociedade, que se reflectiu também na Igreja. Até nos materiais usados houve uma certa contenção. O século XXI está a recuperar a nobreza e beleza das vestes religiosas, porque o princípio é o de que a Deus dá-se o melhor".
O pároco remete para o famoso ditado medieval: "O hábito não faz o monge... mas distingue-o de longe".
IMAGENS DE FREIRAS VENDEM NOVAS COLECÇÕES
Quando a casa Yves Saint Laurent apresentou em Milão a nova colecção para 2011 a assistência não conteve o espanto. Modelos, jovens e elegantes, desfilaram fatos brancos e negros, onde pontuavam cortes e insígnias inspirados nos hábitos das freiras. E apesar do designar Stefano Pilati negar qualquer intenção de se apropriar do imaginário religioso, as semelhanças eram evidentes.
Usada exaustivamente na literatura e no cinema, "a imagem da freira vende", diz a americana Elizabeth Kunh, autora do livro ‘Hábito - A História do Vestuário da Freira Católica'. "Ao mesmo tempo que serve para ocultar o corpo e mascarar o indivíduo, o hábito também anuncia dramaticamente o seu portador ao Mundo. O hábito tem o glamour da moda ao ser ‘antifashion', é a antítese da extravagância e sedução sexual (...) e o avistamento de uma freira de hábito proclama algo tão radical que não podemos deixar de reagir com temor e reverência ou desconfiança", explica.
A autora adianta que "a partir deste vestuário, imediatamente reconhecemos uma mulher que decidiu comprometer a sua vida a Deus, renunciar à possibilidade de gerar filhos e trabalhar dentro dos limites de uma comunidade para um propósito sagrado".
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