Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

PARA QUEM GOSTA DE OURO PRETO, DO BARROCO, E DO ARCANO.

O chegar a pagina 428 do livro meu ultimo livro, O PAPA BESOUROS (Redes Editora, Porto Alegre) a Salete Mores (minha editora) começou o corta-corta editorial, para que o livro não se enquadrasse no "genre" de "epistola", e como resultado, cortamos, entre outras coisas, o seu longo PREFACIO. Bem, gostava tanto dele que aqui, com saudosismo, o publico: SdM



PREFÁCIO

 

A viagem relatada neste livro é complicada e bem mais longa do que a antecipada. Teve os seus ziguezagues, me levou a locais imprevistos e teve o seu começo em Vitória (ES), onde nasci, que para mim já foi uma ilha coberta de sol, sonhos e poesia. De certo modo, esta jornada também começou em João Neiva, uma vila não muito longe da capital onde passei inúmeras férias de verão no casarão da velha Maria Elizabeth, a minha avó alemã, com as tias Damaris e Clélia, o saudoso e proverbial tio Corintho, os primos Adilson e Arilton, a prima Eugenia Maria e uma mão cheia de bons amigos.

Lá havia cachorros, pássaros, papagaios - quase uma cena de Gabriel Garcia Marques - num chalé de alegria, com um pomar de sonhos e em frente da casa, rolando lerdo, preguiçoso um riozinho todo cheio de curvas e voltas, onde aprendi a nadar.

No pomar havia muitas frutas. Meu finado avô Silvino não acreditava em semente de fruta que não fosse plantada. Havia mangueiras de muitos tipos, jaqueiras, caramboleiras, parreiras, coqueiros, goiabeiras, pinhais, bananeiras de todos os tipos e frutas raras no Sudeste - como serigüela, cajá-manga, cajueiros e até um gigante jenipapeiro.

Durante um hiato de inocência, a linda ignorância infantil me fez pensar que tudo aquilo seria eterno e que João Neiva de fato era um paraíso.

Também havia sempre na casa um constante aroma de café e bolinhos de chuva, vozes familiares, trinar de pássaros e latir de cães, cheiro doce de pomar, do verde, de pedaços da floresta atlântica, um pot-pourri de inocência, descobrimento, vitalidade e alegria que pensei ser aquele tempo eterno.

Ainda hoje, embaçadas pelo filtro do julgamento adulto, remanescem em mim deste tempo um aroma verde de infância, de simplicidade e imagens passadas que rolam em minhas memórias como águas de um regato prístino de sonhos inocentes, rolando entre samambaias, bambuzais, árvores frondosas, murmurando entre troncos caídos, orquídeas e cogumelos, gentilmente fluindo por lisas pedras, com suas águas rolando mansas, cobrindo miríades de seixos em seu leito que brilham tênues sem ferir meus olhos envelhecidos. Foi deveras um tempo bom que tento manter vivo no menino que ha em mim,

* * * * * *

Educação sempre foi de grande prioridade em minha família.  Fui a terceira geração da minha família que estudou no Colégio Americano de Vitória;  e. nesta escola, eu contava os dias para chegar as férias, para embarcar no trem da Vitória-Minas e voltar à vila, ao chalé-sonho, que ainda sempre busco, talvez até mesmerizado em conseqüência de genes atávicos de imigrante que me impelem em diáspora contínua em busca do campo, da terra em busca de raízes. 

Bem, mais ou menos coberto o período de infância, estipularei a quota zero desta jornada como Ouro Preto. 

Quando terminei o segundo grau, fui para Ouro Preto para fazer o curso pré-vestibular de engenharia, para a venerável Escola de Minas; passei no vestibular e após um mês de severo trote eu me tornei um acadêmico da nobre escola.

Ouro Preto foi amor a primeira vista: encantei-me com a cidade, com a sua história e com os seus fantasmas, suas pontes, seus casarões históricos e a sua gente. Parei, ouvi e senti a vila a transpirar ecos de assombros, sussurros dos conchavos dos inconfidentes, e sentimentos de dejá-vù de quase ter participado de encontros secretos e intrigas dos que conspiravam pela liberdade e independência do Brasil.

Durante minha vida estudei o Tiradentes, mas em Ouro Preto me encontrei com ele - nas ruas e botecos, tornei-me camarada do Jovem Alferes Joaquim José Xavier do Exército Imperial, conheci seus amigos e amigas e triste sentei-me na praça que hoje tem o seu nome, debaixo do obelisco que marca onde a sua cabeça foi exposta depois de esquartejado.

Mais foi a Vila Rica do que a Escola de Minas que mais abriu minha imaginação e me expôs a diversas facetas da vida artística, política, filosófica, literária e religiosa.  A cascata de novos estímulos polinou a minha mente e me deu uma renovada concepção da vida.

 

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Ouro Preto é uma cidade serrana, localizada nas montanhas das Minas Gerais a cerca de novecentos metros de altura, com uma temperatura sempre agradável, nem muito quente nem muito fria. Fundada em 1698, ela parece estar congelada no tempo.

A arquitetura de suas construções é um raro estilo barroco colonial português. Igrejas foram construídas como fortalezas, e há por toda parte esculturas de santos, feitas no século XVIII em pedra-sabão, espalhadas pela cidade e co-habitando com seus habitantes. Por força de lei, suas construções foram tombadas, e assim a arquitetura da cidade permanecerá preservada, sem mudanças. Mas isso não se dá com a sua vida artística e literária: ela se agita, desenvolve-se e cresce entre os estudantes e também entre os cidadãos em geral.

Naquela vila, deparamo-nos em suas ruas com artistas e seus cavaletes fazendo pinturas a óleo sobre tela; outros fazem escultura em suas praças, artesanato pelas esquinas e outros tipos de arte; o velho Teatro da cidade está sempre em atividade e há música erudita, cantatas e madrigais em suas igrejas barrocas.  Ouro Preto dos anos setenta vibrava com o Festival de Inverno, realizado no mês de junho – onde seminários de arte, literatura, fotografia e cinema eram oferecidos gratuitamente ou por um preço nominal às pessoas da cidade e aos turistas que vinham de outras partes do Brasil e até do exterior. Os preletores desse Festival – especialistas em suas respectivas áreas artísticas – amando também seus ofícios e a cidade, ofereciam gratuitamente a sua arte e o seu ensino aos participantes desses festivais de inverno.

  Por um decreto da UNESCO em 1980, a cidade tornou-se um Patrimônio Cultural da Humanidade, assegurando-se desse modo, a preservação da sua arquitetura, da sua arte, e suas construções salientes, tais como: o mais antigo teatro em funcionamento da América Latina, a primeira Escola de Farmácia e a segunda mais antiga Escola de Engenharia do Brasil, seus casarões do século XVIII em estilo barroco colonial, pontes de granito em arquitetura romana, estátuas do aleijadinho, pinturas e obras de arte, em suas igrejas e ainda vários cemitérios centenários bem cuidados, mas esquecidos pelo tempo.

  A UNESCO protege também dezenas de antigas igrejas coloniais portuguesas, construídas com sólidas paredes feitas de pedra, cal viva e óleo de baleia. Suas paredes internas ricamente ornamentadas com seus santos de aparência piedosa e anjos cintilantes, cobertos com uma fina camada de ouro em pó.

Essas velhas igrejas são depositárias de antigas pinturas sagradas a óleo sobre tela, e de envelhecidas imagens de madeira esculpida, colocadas sob tetos em arco. Cada igreja reflete o feitio pessoal de seus antigos freqüentadores. Por exemplo, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, construída por negros, livres e escravos, em meados do século XVIII, é considerada a única igreja barroca no Brasil com fachada arredondada e com anjos, imagens e santos de pele de cor escura.

No dia da sua inauguração, o nobre ex-escravo Chico Rei lá chegou em sua luxuosa liteira dourada, com vários de seus compatriotas por ele alforriados, para dançar em frente da igreja um africano congado.

A tradição diz que Chico havia sido um escravo que na África era da nobreza local e que comprou sua liberdade - bem como a de dezenas de escravos da sua nação natal. Ele tornou-se muitíssimo rico por explorar minas de ouro, e estabeleceu sua própria corte na nobreza portuguesa de Ouro Preto. Sob a proteção da Igreja Católica e de homens de negócio que aferiam lucros provindos de sua imensa fortuna, Chico Rei foi um dos Gaius Maecenas da Nossa Senhora do Rosário e de outras igrejas de negros da cidade.

Outro exemplo em que o feitio pessoal dos membros foi o que influenciou a natureza da congregação acha-se na Igreja de Nossa Senhora do Pilar, a mais suntuosa igreja barroca da cidade. Seus freqüentadores eram principalmente abastados comerciantes, políticos e ricos “cristãos novos”, que literalmente esbanjaram mais de quinhentos quilos de ouro em pó no rico e luxuoso interior dessa Igreja. A branca Igreja de Pilar não podia ficar nada atrás do negro templo do Rosário...

O ritmo e a cadência suave da cidade de certo modo decorrem do freqüente badalar de dezenas de sinos de igrejas. Seus toques fluem como melaço, ressoando de forma vagarosa o dia todo, sempre chamando para missas, casamentos ou funerais – e anunciando também a hora de Ângelus, dando a impressão de que, na maioria das vezes, os sinos badalavam uns para os outros, sem produzir som. Eles pareciam soar para aqueles que haviam se tornado surdos a seus apelos, soavam para a irreverência dos turistas, e o seu som era uma advertência às armadilhas dos novos tempos – um triste lamento diante de uma já passada era de diamantes, cavalos e carruagens, luxuosas liteiras, exóticas sedas chinesas, licores, vinhos do Porto, diamantes, esmeraldas e muito ouro.

Uma riqueza de valor inestimável de ouro e pedras preciosas foi explorada em Ouro Preto, mas a maior parte dela foi embarcada para a Corte Imperial de Lisboa, e uma porção menor, se bem que substancial, contribuiu para alimentar a Revolução Industrial na Inglaterra. As migalhas que foram deixadas em Ouro Preto, no entanto, foram suficientes para torná-la mundialmente uma das mais ricas cidades do seu tempo.

Por mais de um século, até o dia de hoje, estudantes têm vindo de toda parte do país para se alojarem em grandes casas coloniais, estabelecidas como dormitórios pela Universidade. Os estudantes as chamam de repúblicas, cada uma delas tendo um nome que tenta refletir as características de seus fundadores: Os menos religiosos estão na república de nome Vaticano; os mais sensuais ficam no Jardim de Alá; os nordestinos agremiam-se na Verdes Mares – e assim por diante.

Quando cheguei a Ouro Preto, antes de entrar na Escola de Engenharia, minha primeira república localizava-se bem perto da Igreja de Nossa Senhora do Pilar, e seu nome era Buraco do Tatu. Este nome tem a ver com a condição de seus moradores, que viviam numa rua situada na extremidade mais baixa da cidade, perto da Igreja do Pillar.

A aldrava sobre a porta de entrada da república Buraco do Tatu era uma velha tampa de privada de madeira pintada de vermelho. Sobre ela estava, em letras brancas, a famosa frase atribuída ao imperador Constantino ao marchar contra Roma: In Hoc Signus Vinces. Essa infame aldrava, com um pouco da história bizantina, era um insulto aos bem-educados sacerdotes que conduziam procissões que passavam à frente daquela república, e mais ainda, uma permanente fonte de atrito entre os estudantes do Tatu e o povo devoto, em geral.

            Ao entrar na Escola de Minas, fui convidado a entrar numa república de estudantes de engenharia chamada Pureza, que ficava ao lado duma outra república, chamada Vaticano. Dizia-se que Pureza era tão pura como neve suja em beira de rodovias, mas na época, só conhecendo a neve em cinemas, pensava que toda neve era branca e linda... 

A maioria de seus estudantes, os assim chamados “os Puros”, eram bons meninos provindos de vários estados do Brasil. Eles eram um pouco desregrados, dedicados boêmios que tinham a reputação de serem beberrões, e, pior: em sua maioria, mantinha boas relações com as funcionarias da madame Santita, à guardiã do bairro proibido, localizado um pouco abaixo da Escola de Farmácia.

O povo da cidade nos tolerava, a menos que tentássemos sair com as moças da localidade – neste caso toda a tolerância terminava e eles tornavam-se tão “amigos” quanto foram os romanos de Átila. Somente com as moças que vinham de fora (turistas, por falta de conhecimento) e com as meninas da madame Santita (porque sabiam demais) é que podíamos ter encontros amorosos.

Nos primeiros anos da década de 70 a vida me era muito agradável: eu amava Ouro Preto e meus companheiros (meus “irmãos”, como dizíamos) da Pureza. A Escola era boa, e boa era também a comida servida no seu refeitório – e o meu futuro parecia ser promissor. Os que se formavam na Escola de Minas sempre encontravam um emprego com facilidade. Ouro Preto era um oásis de felicidade num país devastado por uma ditadura militar desde 1964.

Mas nesse assunto político eu não me metia e tampouco punha o meu nariz onde não era chamado; tentava me manter neutro em questões polêmicas e não confrontava os militares. Lia todo livro que me viesse à mão e estudava a história local. Dedicava meu tempo livre ao serviço de confortar e guiar mulheres solitárias que vinham como turistas em fins-de-semana e, por certo, sempre havia uma cerveja gelada que nos era servida nos bordéis da madame Santita.

Meus livros de estudo eram abertos o mínimo indispensável para eu obter uma média passável, e assim a vida me era confortável e muito agradável. Porem não demorou muito para que aquela situação tão boa de repente mudasse completamente.

O governo militar começou a atuar com maior prevalência sobre a população em geral. Em sua maioria, os estudantes por todo o país levantaram-se em protesto contra as injustiças, mas valentões da ditadura começaram a aterrorizá-los.

Que o diga o nosso querido João Bosco, hoje cantor e compositor e o César Maia, ex-prefeito do Rio, ambos ex-alunos da Escola de Minas sendo que o César, nome de guerra Do Cuzão, era nosso irmão da Pureza.

Menezes, um estudante de engenharia da República Amarra-Golo, desapareceu por algum tempo. Meses depois ele retornou à cidade: quieto, introvertido, bebendo muito, coxeando e andando com uma bengala. Sua perna tinha sido maldosamente quebrada.

            Alguns estudantes que não tinham papas na língua, que eram politizados e que protestavam contra o governo começaram a desaparecer.

Agentes enviados pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) entravam em nossas repúblicas estudantis para procurar livros “políticos”; por incrível que pareça Das Kapital de Marx era um dos livros colocados na lista negra, mas não o Mein Kampf de Hitler.

Revistas e jornais com idéias contrárias, como o Pasquim - e também as de conteúdo sexual, tais como Hustler, achavam-se na lista negra. O pessoal do DOPS divertia-se em apavorar os estudantes quando faziam diligências nas repúblicas, em altas horas da noite, sem os devidos mandatos legais – e, muitas vezes, os agentes exalavam bafos de cachaça barata.

Eles sempre traziam armas automáticas e submetralhadoras. Até mesmo livros escritos por Jean Paul Sartre, Franz Kafka ou um pôster de Mahatma Gandhi poderiam ser considerados subversivos e sujeitos a serem apreendidos e seus donos investigados dependendo do alto conteúdo etílico - ou do baixo nível cultural - dos policiais. A regra geral dos agentes do DOPS era a seguinte: em caso de dúvida a respeito de qualquer coisa, a regra era considerá-la subversiva.

Ouro Preto sentia-se abatida, tal como a população pensante da nação. Um irmão de Republica, Newton, apelidado de Esculacho, era um rapaz alto, esguio de boa aparência, que cursava o terceiro ano de engenharia. Um dia ele desapareceu. Diziam que seu pecado capital foi o de ter um pequeno pôster de Che Guevara, pendurado à parede de seu quarto, e que provavelmente ele o tinha para reforçar sua imagem com as namoradas com quem compartilhava o seu quarto. No pé do ouvido se dizia que ele e Do Cuzão bem como o Lincoln, “aprontavam” em Belo Horizonte, e se isto foi fato, que bom, e mais força para eles.

Quanto a mim, irritado, eu já falava abertamente contra a ditadura e depois do desaparecimento de Newton, comecei a abrir mesmo a boca, expressando-me livremente o que o que tinha em minha mente sobre democracia, liberdade e direitos constitucionais.

À boca pequena fui então informado de que o meu nome estava na lista negra do Departamento de Ordem Política e Social. Fiquei tão aborrecido e desgostoso com isso que nem mesmo comentei o fato com a minha família.

 

                                                             * * * * * *

 

            Meu pai havia sido um “pracinha”, que serviu com a FEB (Força Expedicionária Brasileira) durante a Segunda Guerra Mundial. Alem de ser um patriota era um homem bem respeitado e bem relacionado. Bastaria apenas arranjar uma declaração escrita por um advogado e por mim assinada, negando o meu posicionamento político, para que eu pudesse continuar a viver em paz. Mas eu não queria esse tipo ridículo de paz: eu já não me agüentava, estava farto de ver o meu amado Ouro Preto ser debochado, a minha República ser saqueada, a minha escola ser visada e muitos de meus amigos serem intimidados, escorraçados, mutilados ou desaparecerem.

Que o DOPS e a Ditadura dessa República de Banana fossem para o inferno!

Depois de dar de presente meus livros e outros pertences a alunos mais necessitados, e tendo arrumado numa mochila todas as roupas que nela coubessem, junto com documentos e meu passaporte, fui à estrada e dei início à minha jornada.

 

                                                            * * * * * *

 

Sem uma passagem para sair do Brasil de avião, caminhei pelas estradas e caminhos do Brasil. Cruzei as fronteiras para o Uruguai e para a Argentina; atravessei os Andes e cheguei ao Chile.

Peguei a rodovia Pan Americana, prosseguindo em direção norte. Caminhei, pedi caronas e caminhei muito mais ainda. Vi coisas que me deslumbraram com a sua beleza, outras que foram repugnantes e algumas me amedrontaram, mas nunca perdi o meu objetivo de sair do Brasil.

Fui caminhando e pedindo carona inicialmente para o Sul, cruzei os Andes e depois segui sempre para o norte até que um dia cheguei à Califórnia, nos Estados Unidos, um ano e meio depois.

O orgulho não me deixou pedir qualquer subsidio aos meus pais. Paguei meu curso universitário na América fazendo as entregas do jornal Los Angeles Times, e também dirigindo um caminhão de suprimento aos aviões no Aeroporto Internacional de Los Angeles.

Minha vida girava em torno do El Camino College. Fiz amizade com um professor, de nome Bruce Milton Brown, que, além de amigo, tornou-se meu confidente e guru intelectual.

As mesas do píer da praia de Redondo, e as do Centro de Estudos em El Camino tornaram-se o meu local de estudo. Os locais abertos junto ao lago Arrowhead e Big Bear ficaram sendo refúgios para mim, e uma Kombi Caravana me serviu para o transporte, casa de campo, casa de lago e residência de praia.

Conheci Wanda Martin em Riverside, Califórnia. Ela provinha do estado de Carolina do Sul. Apaixonamo-nos um pelo outro e o nosso casamento durou 35 anos. Ela foi uma boa companheira. Aprendi a amar os Estados Unidos, o país que adotei e que por vezes é tão confuso como a minha terra natal.

Impressionado com a variedade de cursos oferecidos no El Camino, matriculei-me sedento de cultura, e peripatético, tentei açambarcar todos os cursos possíveis: Astronomia, Física, Cálculo, vários cursos de Literatura, bem como cursos de Provador de Vinho, Filosofia, Fotografia e Arte – mas logo optei pelo Curso de Redação Criativa para nele obter a minha graduação.

Depois de concluir o curso e diplomar-me em El Camino, transferi-me para Cal State Long Beach e aprofundei-me mais em literatura. Quando me graduei, nasceu-nos uma bela menina, Andréa Elizabeth. Seu nascimento foi também o início de uma postura mais sóbria com relação aos meus dias de “vinho e rosas”.

 

                                                            * * * * * *

 

Sou originário de uma família de imigrantes europeus que vieram para o Brasil. Fui criado ouvindo que “um imigrante tem de ser melhor para ser igual” e, assim, esta mensagem ficou entranhada em minha mente. Tornando-me aqui nos Estados Unidos um imigrante, esforcei-me o que pude para tornar-me um americano “tal como os demais”. Minha modesta pretensão era de viver com dignidade no país que adotei, em iguais condições com os nativos desta nação – e ainda contribuir, de algum modo, dando de volta à América algo em gratidão por me ter aceitado neste auto-exílio.

Aqui nos Estados Unidos, especialmente na Califórnia, minha experiência pessoal estendeu-se. Pude discernir a pequenez de nosso planeta, ao conhecer pessoas provindas de todas as partes do mundo.

Ao português, que é minha língua materna, e ao inglês, que logo aprendi, acrescentei ainda o espanhol, o italiano, o francês, um pouco de alemão e algumas más palavras em hebraico e yiddish.

História em geral, bem como geografia e genealogia tornaram-se alguns dos meus muitos hobbies. Viajar também: Também viajei muito pelos Estados Unidos, Brasil e nos últimos vinte anos tenho ido para outros países, em férias ou a negócios.

Porém, por mais que minha vida corresse razoavelmente bem, e os ventos me fossem favoráveis, havia em mim um anseio, um sentimento de que algo estava faltando em minha jornada. O autor americano-libanês Gibran Khalil Gibran afirmou que são necessárias três coisas para um homem ser completo: plantar uma árvore, ter filhos e escrever um livro.

Passando em revista a minha vida, posso dar conta de dezenas de árvores que já plantei, e continuo plantando. Desse modo, já cumpri o primeiro quesito dado por Khalil Gibran para a realização humana.

No que tange a filhos, Wanda e eu fomos abençoados com dois filhos: Samuel José de Mattos III, nosso Sammy Joe; e James Thomas José de Mattos, nosso Jamos e uma princesa, a Andrea Elizabeth.

Andrea é tanto dada à família como aos negócios. Ela é a pessoa sensível, ama as artes e, ao mesmo tempo, sincera e perspicaz e pragmática. Minha filha e eu gastamos poucas palavras: só pela nossa expressão corporal, ou mesmo com um olhar, nos entendemos. Ela é extremamente artística e não perde a perspectiva de ter sempre uma boa reserva financeira e um fundo de educação para a sua filha Elizabeth Naomi. Além disso, Dréa é também um tipo de jovem voluntariosa, alta - e de uma rara beleza.   

Sammy Joe é uma simbiose do filósofo Martin Buber e Giacomo Casanova; é alto, moreno, magro, cabelos longos, e belos olhos negros e sonhadores. Ele trabalha, lê muito, gosta demais de história e da vida, e é um pensador e romântico incorrigível. Perdoem-me pela aparente incongruência na descrição do Sammy, mas tanto ele como eu parecemos crer que o ziguezague é a linha mais curta entre dois pontos.

Já o James Thomas, o Jamos, é inteligente, atencioso e modesto. E muito emotivo, sensível e estóico. Nunca pede nada, tudo para ele está bem. Se formou em informática na Universidade do Arizona – é um meninão calmo de dois metros e sete centímetros de ternura. Ele também é de uma honestidade brutal: chama cão de cão e gato de gato.

Em acréscimo ao que Gibran estabelece em sua segunda condição para a realização humana, temos até três belos netos: Sammy Joseph IV, Elizabeth Naomi e Chloe Victoria e eu também amo muito a todos eles.

            Contudo, observei que eu não tinha escrito um livro. Quanto ao terceiro quesito de Khalil Gibran, eu estava devendo. Assim, aos poucos fui escrevendo alguns capítulos e, com a paciência, procurei juntá-los num livro, mas sentindo que subconscientemente eu estava praticando uma auto-sabotagem, dando um tiro em minha mão digitadora, e indo a passos tão lentos que faria com que o livro nunca se completasse.

Fiquei em dúvida ainda quanto a escrever o livro em português ou em inglês. Preocupei-me com o meu estilo, ou com a sua falta; também pensava muito sobre o aspecto um tanto autobiográfico versus a minha “liberdade poética” e até me empaquei em medir a dose entre diálogos e prosa: resumindo, esse livro estava condenado a não nascer.

Com a recente morte de meu pai e meu melhor amigo, senti claramente que “a biga alada do tempo” do poema de Marvel (“To His Coy Mistress”) estava se aproximando rapidamente de meus calcanhares. Eu quase conseguia tocar a efemeridade da vida com a ponta de meus dedos.

Percebi que o meu perfeccionismo e procrastinação estavam detendo a minha escrita e mais: havia se tornado uma desculpa para a minha covardia literária. Eu estava sabotando o meu próprio livro, com medo de quão medíocre ele poderia ser.

Percebendo isso, e animado pela minha atual esposa a, gaucha Silvia Martinewski de Mattos, voltei a escrever meu livro com a determinação de um pug chinês e com a inquietude de um Dachshund.

Com a ajuda do meu cunhado Milton de Azevedo Andrade, eu comecei organizando os meus escritos, alinhavando uma colcha de retalhos literários, notas pessoais e contos, e este livro foi criado, com amor, honestidade e lágrimas.

Sim, diluído em ficção há flashes de experiências pessoais e muita coisa que vivenciei e testemunhei: que só em livro poderia ser dita.

Confesso cheguei a chorar quando revolvi certas coisas que pensava perdidas no meu baú de memórias.

À medida que me aproximava do último capítulo, entendi que este livro não tinha nada a ver com os axiomas de Gibran, ou com a minha busca de realização; pelo contrário, descobri que o Papa Besouros reflete uma longa jornada – e foi apenas um tributo: um tributo às muitas vidas que conheci e que me tocaram; aos sonhos e almejos de tantos amigos e amigas - que um dia foram quase tangíveis e concretos, mas que se tornaram meras lembranças desvanecidas na garoa do tempo. As pessoas que um dia eu prometi que daria o meu testemunho.

            Finalmente, estes escritos são um tributo a todos que contribuíram, participaram e deram sentido à minha não terminada jornada, incluindo-se aí os que me amaram, os que me amam e alguns poucos adversários honestos que me amam menos - mas que tanto me motivam.

 

Carolina do Sul, 2010.

 

 

 




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