Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

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Decisão do STF: sanções políticas em matéria tributária

Decisão do STF: sanções políticas em matéria tributária
Fonte: STF
Colisão de direitos e valores constitucionais, princípios da razoabilidade e proporcionalidade, legitimidade e efetividade da ação estatal foram objeto de análise pelo STF (Supremo Tribunal Federal), no julgamento de recurso extraordinário em que se discutia a constitucionalidade de dispositivo de lei que permite à administração fazendária cancelar o registro especial concedido para a fabricação de cigarros, em decorrência do inadimplemento de obrigação tributária relativa a tributo federal (RE 550.769, Rel. Min. Joaquim Barbosa).

As discussões centraram-se em saber se, no caso, estaria configurada ou não a imposição de sanção de natureza política pelo descumprimento de obrigação tributária, decorrendo daí os argumentos relativos à colisão entre as liberdades de índole econômica, de um lado, e valores como saúde pública e defesa da concorrência, de outro.

Sanções políticas em matéria tributária, como se levantou nos votos de diversos Ministros, são restrições ou proibições impostas ao contribuinte como forma de, indiretamente, forçá-lo ao pagamento de tributos ou ao cumprimento de obrigação tributária acessória. Têm como finalidade precípua assegurar a efetividade de obrigações tributárias, de modo a, em última instância, garantir ou aumentar a arrecadação.

O assunto de há muito é conhecido da jurisprudência do STF, que possui inúmeros julgados e três súmulas sobre o tema, sempre no sentido de considerar incompatível com a ordem constitucional a imposição de sanções políticas no campo tributário. É assim que, nos termos das Súmulas de nº 70 e nº 323, ambas aprovadas em dezembro de 1963, consideram-se inadmissíveis a interdição de estabelecimento e a apreensão de mercadorias como meios coercitivos para cobrança de tributo; ou, então, como se extrai da Súmula nº 547, de dezembro de 1969, não poderia a autoridade impedir o contribuinte que estivesse em débito de adquirir estampilhas, despachar mercadorias nas alfândegas ou exercer suas atividades profissionais.

Já sob a égide da Constituição de 1988, acórdãos de lavra de Ministros integrantes da atual composição do STF reforçaram esse entendimento. Foi assim, quando se considerou ser conflitante com a Constituição legislação estadual que proibia o contribuinte em débito de imprimir notas fiscais em bloco, sujeitando-o ao requerimento de expedição, negócio a negócio, de nota fiscal avulsa (RE 413.782, Rel. Min. Marco Aurélio); ou, então, quando se considerou, em maio de 2012, que condicionar a concessão de regime especial de tributação à apresentação de CND (certidão negativa de débito) seria um meio indireto de cobrança de tributo e, por isso, ofensivo ao princípio da livre atividade econômica (AI 798.210 – AgR, Rel. Min.  Gilmar Mendes).

O histórico jurisprudencial do STF, remoto e recente, revela-se, assim, favorável às liberdades de iniciativa, atividade econômica e exercício profissional, tomando por ilícitos meios indiretos de cobrança de tributos, que possam levar ao esvaziamento do conteúdo dessas liberdades.

No julgamento do RE 550.769, todos esses aspectos foram levantados e explorados pelos Ministros, que se dedicaram à análise da exigência contida no art. 2º, II, do Decreto-lei 1.593/1977, com a redação dada pela Lei 9.822/1999. A legislação referida estabelece que a atividade de fabricação de cigarros somente poderá ser exercida pelas empresas que mantiverem registro especial na SRF (Secretaria da Receita Federal) do Ministério da Fazenda, podendo o registro ser cancelado pela autoridade concedente, entre outras hipóteses, no caso de não cumprimento de obrigação tributária principal ou acessória, relativa a tributo ou contribuição administrado pela SRF.

O recurso em questão, interposto por empresa fabricante de cigarros, foi precedido de ajuizamento de AC (ação cautelar) em que se buscava atribuir-lhe efeito suspensivo, de forma a evitar que a SRF, com base no acórdão de segunda instância que havia considerado lícita a aludida previsão legal, executasse a medida coercitiva enquanto não fosse julgado o apelo extraordinário. Já no julgamento da AC 1.657 começou a se delinear a linha de argumentação que viria a prevalecer no do RE 550.769, afastando a incidência à hipótese do entendimento jurisprudencial até então existente no STF.

Do voto do Relator para o acórdão na AC, Min. Cezar Peluso, extrai-se que a atividade de fabricação de cigarros “é meramente tolerada pelo poder público”, ao qual não resta “alternativa política e normativa razoável”, incumbindo-lhe “resguardar interesse específico da administração tributária no controle da produção de cigarros e que não é apenas de cunho fiscal-arrecadatório”, mas vai além, atingindo atores e valores sociais outros, como consumidores, concorrentes e livre mercado, com interesses igualmente tutelados pela ordem constitucional. A finalidade extrafiscal que fundamenta no caso “a exigência jurídica dos requisitos previstos para a manutenção do registro especial, entre os quais se inclui o da regularidade fiscal” seria a defesa da livre concorrência, que não se confundiria, no entender do Ministro, com a lógica de indução do pagamento do tributo. Considerou, para tanto, com base em dados constantes dos autos, que 70% do preço final do produto correspondem ao valor devido a título de IPI (imposto sobre produtos industrializados), de forma que a inadimplência do dever de pagar tributos geraria uma vantagem concorrencial indevida e irreversível para o contribuinte faltoso, em comparação com os que cumprissem suas obrigações. A defesa da concorrência, além de princípio constitucional da ordem econômica (art. 170, IV), poderia servir de finalidade à norma tributária, tanto mais por contar atualmente com expressa previsão constitucional (art. 146-A, introduzido pela Emenda Constitucional nº 42/2003), amparando a exigência posta para as fabricantes de cigarro. Sendo a exigência válida para todos os participantes do setor e estando relacionada a fator determinante na composição de preços do produto, deve por todos ser igualmente observada, não cabendo diferenciar entre eles, sob pena de se frustrar a finalidade última da norma, que é o desestímulo de um ato (fabricação de cigarros) que a ordem jurídica tolera.

A singularidade fática e jurídica do caso autorizaria, assim, a conclusão de que não se estaria diante de sanção política para compelir ao cumprimento de obrigação tributária. Entendeu o Min. Cezar Peluso, na ocasião, com base em estudo de Tércio Sampaio Ferraz Jr., que não só a finalidade da exigência seria compatível com a ordem constitucional (a defesa da concorrência), como ainda seria revestida de razoabilidade, na medida em que coexistentes “os requisitos da necessidade (‘em setor marcado pela sonegação de tributos, falsificação do produto, o aproveitamento de técnicas capazes de facilitar a fiscalização e a arrecadação é uma exigência indispensável’), da adequação (‘o registro especial, sob condição de regularidade fiscal, é específico para a sua destinação, isto é, o controle necessário da fabricação de cigarros’) e da proporcionalidade (não há excesso, pois a prestação limita-se ‘ao suficiente para atingir os fins colimados’)”.

Esses argumentos, usados para indeferir a medida cautelar pleiteada pela empresa, ressurgiram e acabaram por ser acolhidos pela maioria dos Ministros, no julgamento final do RE, ao qual se negou provimento. O Min. Joaquim Barbosa, relator do RE e que à época votara pelo deferimento da cautelar, por entender que seria a melhor maneira de resguardar o resultado útil do julgamento, considerado o retrospecto da jurisprudência da Corte sobre a matéria favorável à tese da recorrente, acabou por perfilar-se à linha argumentativa inaugurada pelo então Min. Peluso; para evidenciar a especialidade fática e excepcionalidade jurídica do caso diante do qual se encontravam, chegou a afirmar que “é da essência das empresas da indústria tabagista sonegar”, dado que, das catorze empresas do setor, apenas duas cumpririam sua obrigações tributárias. O Min. Ricardo Lewandowski falou que se estaria diante de uma “macrodelinquência tributária reiterada” e que não se poderia pretender aplicar ao caso as Súmulas do STF, todas referentes a devedores que se inserem no regime geral de atividades econômicas e não em “setor específico e especialíssimo como o da indústria tabagista”, que é tolerada pelo Estado. Em conjunto com o Min. Dias Toffoli, ressaltaram esses Ministros que a situação comum no setor é a de fechamento de uma empresa, por sonegação fiscal, seguido de abertura de outra, geralmente com uso de um “testa de ferro”, a fim de se aproveitar das vantagens e lucros advindos do fato de não pagarem tributos que seriam por todos devidos.

A dissidência centrou-se nos votos dos Ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello, que resgataram, mais do que a longeva jurisprudência do STF, as razões jurídicas por trás dela existentes.

É interessante observar que o Min. Gilmar Mendes, no julgamento da AC, havia acompanhado o voto do Min. Cezar Peluso, pelo indeferimento da cautelar, assinalando, entre outras razões para tanto, a de que, no âmbito da fabricação e comercialização de produtos fumígenos, “os comprovados e graves danos à saúde pública causados pelo cigarro e outros derivados do fumo, assim como a necessidade de um plus de proteção ao consumidor de produtos do tabaco, tendem a funcionar como uma espécie de justificativa geral para a intervenção estatal mais rigorosa”, de forma a condicionar o exercício das liberdades econômicas – a exemplo das restrições existentes em lei para a propaganda comercial de tais produtos. Já no momento em que proferiu seu voto no RE, embora tenha asseverado que se estivesse diante da colisão entre, de um lado, a liberdade de iniciativa e a livre concorrência como valores da ordem econômica e, de outro, a defesa da saúde e do consumidor como princípios justificadores da ação do Estado regulador, acabou por concluir que, no caso em tela, nem a natureza altamente nociva dos produtos fumígenos, nem a defesa da concorrência serviriam para dar fundamento à exigência do art. 2º, II, do Decreto-lei 1.593/1977, com a redação dada pela Lei 9.822/1999, cujo sentido único seria mesmo o de reforçar a eficácia das normas tributárias que oneram o setor econômico em questão. Tratar-se-ia, portanto, de regra com “clara natureza de sanção política, estabelecida em benefício da arrecadação fiscal e em evidente descompasso com a jurisprudência do STF”.

Assinalou, ainda, que o motivo previsto em lei para o cancelamento do registro especial é o mesmo que leva à imposição de multa ou execução fiscal: o mero descumprimento da obrigação tributária principal ou acessória. É consequência que implica a proibição do exercício da atividade econômica, já que esta depende do registro especial, e que por mais essa razão não deveria ser posta à disposição da autoridade fiscal, seja porque esta dispõe de outros meios para obter o resultado pretendido, seja porque medida excessiva como essa exigiria, no mínimo, intervenção jurisdicional, mediante observância do devido processo legal – a exemplo do que se exige para a dissolução compulsória de uma associação (CRFB, art. 5º, XIX). A aplicação da medida, nos dizeres do Ministro, representaria a “pena de morte” da pessoa jurídica – e ainda executada por meio de ato administrativo.

Esses últimos aspectos foram trabalhados no voto do Min. Marco Aurélio, que apontou o fato de que, para fins de satisfação arrecadatória, já há mecanismos eficazes, bastando a inscrição do débito em dívida ativa, em conformidade com o figurino legal para tanto existente, e promoção da competente execução fiscal. Dar-se carta branca à SRF para decidir sobre o cancelamento do registro especial nas situações de inadimplência tributária – já que esta é uma faculdade dada à autoridade concedente do registro – poderia ensejar, inclusive, tratamento diferenciado entre contribuintes que estivessem na mesma situação, conforme a decisão da SRF fosse pelo cancelamento do registro ou pelo caminho da execução fiscal, em afronta ao princípio da isonomia em matéria tributária (CRFB, art. 150, II).

Todos esses apontamentos convergiram no voto do Min. Celso de Mello, que, invocando farto suporte doutrinário e jurisprudencial, salientou que, se é verdade que a liberdade de atividade empresarial, econômica ou profissional não é absoluta – como nenhuma liberdade o é – isso não significa que a administração tributária possa frustrar o exercício da atividade empresarial ou profissional do contribuinte inadimplente. Já há prerrogativas extraordinárias que garantem o crédito tributário, como a medida cautelar fiscal, que gera a indisponibilidade de bens da empresa e do acionista controlador (Lei nº 8.397/1992). Restrição que implique cerceamento da liberdade de exercer atividade econômica lícita é inconstitucional; sempre que houver possibilidade de se impor medida menos gravosa à esfera jurídica do indivíduo infrator cujo efeito seja semelhante à medida mais limitadora, deve o Estado optar pela primeira. Lembrou o magistério do Min. Orozimbo Nonato, no sentido de que “o poder de tributar não pode chegar à desmedida do poder de destruir”, pois essa extraordinária prerrogativa estatal traduz um poder que somente pode ser exercido “dentro dos limites que o tornam compatível com a liberdade de trabalho, comércio e indústria e o direito de propriedade”.

No caso em exame, ponderou o Min. Celso de Mello, “há afronta a cada um dos subprincípios da proporcionalidade”; “a defesa da saúde pública e da concorrência são valores nobres, mas certamente não razões subjacentes à cláusula legal em exame”, que representa um avanço abusivo do legislador nas liberdades da seara econômica. Fez lembrar, por fim, as cláusulas constitucionais dotadas de “função tutelar, vocação protetiva” e a missão institucional do Poder Judiciário de “neutralizar eventuais abusos das entidades tributantes” que se olvidem da existência de um estatuto constitucional de defesa do contribuinte.

O STF voltará ao tema das sanções políticas em matéria tributária, quando do julgamento do RE 565.048, com repercussão geral reconhecida, em que se travará “discussão em torno da possibilidade constitucional de o Poder Público impor restrições para a impressão de documentos fiscais em face da inadimplência do contribuinte” – já pedida sua inclusão em pauta, conforme publicação de 24 de maio último.

Por ora, como balanço geral, uma análise das razões de decidir invocadas nos votos vencedores pode deixar a impressão de que se quis combater uma situação de fato danosa aos interesses da Administração – e, quiçá, de alguns agentes econômicos - buscando-se para tanto argumentos que lhe servissem de suporte e pudessem fazer frente a uma já consolidada jurisprudência constitucional. Ocorre que, como assinalou o Min. Gilmar Mendes, não se está apenas diante da situação peculiar de contribuinte que é grande devedor da Fazenda Nacional, mas sim da constitucionalidade de dispositivo legal que permite impedir o exercício de atividade econômica por conta do inadimplemento de um tributo federal. De mais a mais, como indagou o Min. Marco Aurélio, se há dívida, é conhecida e grande – chega a R$ 2 bilhões, “onde está o Estado que não cobra esses impostos?”. Fins supostamente nobres não podem justificar meios torpes, que coloquem em risco garantias constitucionais contra o avanço do Estado sobre o indivíduo. Resta aguardar os efeitos que essa decisão, ao tomar por legítima a possibilidade de a administração impedir o exercício de atividade econômico-empresarial pelo não pagamento de tributos, produzirá sobre a jurisprudência do próprio STF – e mais, sobre a disposição do Estado arrecadador em relação a seus contribuintes. 

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